NOSSA SENHORA DE NAZARÉ COMO VIRGEM NEGRA

Apesar de algum ceticismo, a Senhora de Nazaré inscreve-se na curiosa tradição das “virgens negras”, representações da Virgem Maria com tez escura, que desde a Idade Média surgiram um pouco por toda a Europa. Conheça melhor esta característica da Virgem da Nazaré.

A opinião generalizada entre os devotos e a própria Igreja, ou mesmo entre investigadores, é a de que a cor escura da Imagem que repousa no santuário se deve a fatores triviais como o envelhecimento da madeira, o tipo de madeira ou a acumulação de fumos ao longo de séculos em exposição em templos onde constantemente se queimam velas. Também não deixa de ser um facto, porém, que muitos insistem em colocar a Senhora da Nazaré entre as representantes portuguesas do curioso fenómeno das Virgens Negras, que tem suscitado as mais diversas interpretações, bem menos prosaicas do que o fumo de velas de sebo.

Acontece que há cerca de 450 registos em todo o mundo de Virgens de cor negra, que estes investigadores sustentam, com evidências, que sempre foram negras, a maioria (cerca de 300) em França, mas disseminadas um pouco por toda a Europa, inclusive em Portugal e no Brasil. As mais conhecidas Virgens negras portuguesas são a Nossa Senhora da Nazaré, Constança e Nossa Senhora de Ribamar (Mafra). E do outro lado do Atlântico, temos o exemplo maior da própria Padroeira brasileira, Nossa Senhora da Conceição Aparecida, também designada Mãe Negra.

Na Europa, além das inúmeras representações francesas, o exemplo mais conhecido será o da Padroeira da Polónia, a Virgem de Czestochova, mas são muitos os santuários de Madonas Negras, por norma de origem medieval, como Nossa Senhora de Montserrat (Barcelona); Nossa Senhora de Vilvoorde e Nossa Senhora de Flander, Tournai e Capela de Virgem Negra, Maillen, Assesse (Bélgica); Nossa Senhora de Vie, Avioth (França); Virgem de Evaux les Bains, (França); La Dourade, Toulouse; Nossa Senhora da Boa Esperança, Dijon (França); Nossa Senhora de Rocamadour, Marselha (França); Virgem Negra de Onval (Luxemburgo); Nossa Senhora de Penha de Francia, Salamanca; Virgem do Pilar, na Catedral de Saragoça (Espanha); Nossa Senhoras de Altötting, Baviera (Alemanha); Virgem da Candelária (Colômbia); La Negrita, Cartago (Costa Rica e Tenerife); Catedral da Virgem Negra, Missouri (USA); Nossa Senhora da Eremita e Santa Maria Loretana (Suíça).

Embora a tendência do pensamento dominante seja para desvalorizar o fenómeno, para os defensores da teoria das Virgens Negras, estas foram propositadamente executadas daquela maneira, refletindo uma herança profunda de tradições pagãs, de divindades e cultos da fertilidade da antiguidade pré-cristã, associadas ao Culto Mariano que “explodiu” no período medieval europeu. Nos países sul-americanos, por outro lado, onde também são muitas as representações da Virgem em tom escuro ou feições mestiças, terá sido determinante sobretudo a ligação às características dos povos nativos e à necessidade de promover a sua identificação com os símbolos cristãos. Eis alguns argumentos a considerar:

«A primeira hipótese, é que as Virgens Negras continuam deusas e cultos pagãos e terão sido, elas mesmas, no início, deusas pagãs. A segunda, é que existe uma relação íntima entre as Virgens Negras e Maria Madalena. A terceira é que, até ao século XII, tempo do aparecimento das imagens de Nossa Senhora da Conceição, senhora que, repete-se, continua as antigas deusas mãe e da fertilidade, a mulher dominante no espaço católico seria Maria Madalena.

A Virgem Negra possui analogias a deusas pagãs, o que não é de admirar, pois o Cristianismo continua cultos e rituais antigos. A Virgem Negra lembra Cibele, Diana e Vénus, mantendo algumas semelhanças com as deusas Kali, Innana e Lilith. Os Templários chamavam-na de Maria Madalena e esta, tal como a deusa negra Sara-la-Kali, é adorada pelos ciganos. Para os psicólogos modernos, a Virgem Negra representa o feminino sombrio e, para Carl Jung, representa a deusa egípcia Ísis e a sua iconografia remontará à Pré-História e ao culto da Grande Mãe-Terra. Neste sentido, compreende-se que a vela verdeescuro seja utilizada nos rituais à Virgem Negra. Tal como se compreende que o negro, na Antiguidade, estivesse ligado à fertilidade.

Como diz CALADO, as Virgens Negras continuarão «cultos naturalistas pré-históricos que terão sobrevivido nos panteões celtas e teutónicos sendo, posteriormente, integrados no panteão greco-romano e no cristianismo popular». (2008, p. 2) Compreende-se a importância milenar do culto da deusa-mãe e a sua inserção como que genética no ser humano. Trata-se de um arquétipo. Arquétipo é originário do grego (arche = primeiro + tip o= padrão). Arquétipos, diz YLIMAKI, serão os primeiros padrões que constituem a base da «impressão da personalidade humana» (2006, p. 627). Aos arquétipos, Freud chamava-lhes «resíduos arcaicos», «formas mentais cuja presença não encontra justificação alguma na vida do indivíduo e que parecem antes formas primitivas e inatas representando uma herança do espírito humano». Para Jung, os arquétipos são complexos vividos ou vivenciados que comparecem a modo de destino. JUNG chama-lhes arquétipos ou imagens primordiais (1987, p. 67). Para este autor, há imagens semelhantes nos sonhos dos indivíduos humanos e nas mitologias espalhadas por todo o mundo, pelo que, na opinião de YLIMAKI (2006), as formas ou padrões arquétipos são colectivos, uma parte do psíquico de todos, pelo que universais. Seguindo Jung, ESPÍRITO SANTO diz que «na mitologia, na religião e muitas vezes na vida corrente, uma coisa material é a sombra de uma outra que não se consegue definir nem exprimir, é a sua imagem ou o seu símbolo».

(1987, p. 19). Enfim, Freud chamou-lhes complexos, Jung arquétipos e Platão denominava-os ideias. Uma criança possui, assim, ideias pré-existentes que vêm da sua mãe, do pai ou do professor. A grande mãe será mesmo o mais indubitável, primeiro, forte e duradoiro arquétipo, na opinião de JUNG (1987) e etnólogos das religiões como ESPÍRITO SANTO (1987) e HUSAIN (2001). Nesta linha, e através de uma abordagem psicológica analítica, PENNA propõe uma relação entre o arquétipo da Virgem Negra e a contemporânea necessidade de «conciliar as condições materiais da vida; por exemplo, a sexualidade com a espiritualidade» (2009, p. 1). Charpentier, historiador francês, citado por BIRRENTO (2003), afirma que as Virgens Negras seriam, originariamente, símbolos da Terra e da Deusa-Mãe, havendo representações da Virgem Negra em mais de vinte catedrais, casos de Poitiers e Toulouse, Reims e Aurillac, Amiens e Colónia e Ravena. A catedral de Chartres teria sido construída, segundo o mesmo autor, como muitas outras catedrais, sobre um poço ou nascente, e sobre um santuário dedicado à Virgem Negra ou Grande Mãe.

Não admira que, à sombra da Virgem Negra, da água e do culto da fertilidade, se tenha desenvolvido o culto de Nossa Senhora do Bom Parto, um nome e uma imagem bem mais dentro dos cânones do Catolicismo. Nossa Senhora do Bom Parto é uma designação muito frequente em Portugal, Espanha e França e costuma ter o seu santuário próximo de um regato, ribeiro ou rio, tal como os santuários dedicados a deusas primitivas.

Talvez a lembrar que o parto no meio líquido, ou junto a ele, é bem mais antigo do que se julga. Aliás, ESTRABÃO parece já o referir: «frequentemente dão à luz nas terras onde trabalham e lavam o menino e o envolvem em panos agachando-se junto a um regato» (1992, p. 110).

Nas explicações para a cor negra, é vulgar ouvir-se que foram séculos de velas e de fumo dentro de capelas e catedrais que tornaram estas imagens negras. É a explicação, ainda hoje, da Embaixada da Polónia para a Virgem Negra de Czestochova, a preferida do papa João Paulo II. É ainda a explicação dada para a Senhora da Conceição Aparecida, a Virgem mais conhecida do Brasil. É a explicação vulgarmente dada pela Igreja Católica para a cor destas Virgens. Contudo, não passa de uma explicação ingénua. Como se explicariam as dezenas de imagens mais velhas que permanecem brancas? Além disso, o fumo deixaria as imagens com manchas negróides irregulares, não negras como elas se apresentam.

Não será importante discutir porque são negras centenas de imagens da Virgem, mas como questiona SCHEER, quando é que a sua cor negra «foi percebida e interpretada no seio dos crentes». A autora pensa que tal não aconteceu durante a Idade Média, mas na Contra-Reforma, quando se procurava «legitimar e promover a veneração das imagens miraculosas de Maria» (2002, p. 1413). A negritude das imagens tornou-se explícito no discurso acerca destas Virgens, continua a autora, quando os exegetas bíblicos começaram a utilizar o «sou negra, mas formosa», (Ct 1,5) na compreensão deles. A autora não tem razão. As imagens da virgem Maria aparecem no século XII e o seu culto, como o de qualquer outro santo, no Catolicismo, é inseparável da imagem. Na Contra Reforma esteve em causa o culto das imagens, não o das Virgens Negras. Poder-se-á dizer que, neste processo de questionamento, veio a talhe de foice a cor negra destas virgens, mas este questionamento é intelectual e não popular, que nunca questionou a cor delas, como não questiona os santos que adora.(…)», António Maria Romeiro Carvalho, VIRGEM NEGRA, MARIA MADALENA E NOSSA SENHORA DA CONCEIÇÃO. A CONTINUIDADE DE UM CULTO PAGÃO, AÇAFA On Line, nº 4 (2011) Associação de Estudos do Alto Tejo www.altotejo.org

Fonte: http://www.altotejo.org/acafa/docsn4/Virgem_Negra_Maria_Madalena_N_S_Conceicao.pdf

Virgem Negra, Maria Madalena e Nossa Senhora da Conceição. A continuidade de um culto pagão. António Maria Romeiro Carvalho, Açafa Online nº4, Associação de Estudos do Alto Tejo (2011)
Virgens Negras do Brasil e de Cuba: relações entre catolicismo e política na construção das padroeiras nacionais, Juliana Beatriz Almeida de Souza, UFRJ, Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH, São Paulo (2011)
As possíveis Virgens Negras portuguesas, Rolando Van Zeller, Actas do I Congresso Histórico de Guimarães, Vol. 3, (1980)