DO MÉDIO ORIENTE À COSTA ATLÂNTICA

Como todas as tradições religiosas, o culto de Nossa Senhora da Nazaré radica em lendas e acontecimentos transcendentes, como milagres ou aparições, estamos no domínio da fé e do mito, de histórias que passam de geração em geração e se vão desenvolvendo e enriquecendo ao longo dos séculos. Procurar a factualidade das lendas é, como tal, tarefa inglória, as tradições e as devoções ganham vida própria e uma força que acaba por determinar o modo de vida das comunidades e a mundivisão dos indivíduos, como fonte de esperança, sentido, moral e identidade.

Não nos cabe, como tal, determinar a factualidade dos acontecimentos associados à riquíssima lenda da Imagem da Nossa Senhora da Nazaré que deu origem ao culto e às suas manifestações, mas sim sobretudo explorar os caminhos que esta narrativa nos apresenta e dá corpo a esta tradição Mariana tão peculiar e disseminada.

Ora, reza a lenda, tal como contada pela primeira vez em 1609 pelo monge do Mosteiro de Alcobaça, Bernardo de Brito, na sua obra seminal Monarchia Lusitana, que a Imagem da Virgem de Leite encontrada numa pequena gruta do Sítio por altura da fundação da nacionalidade portuguesa, chegou ali após uma longa viagem que começou na terra natal da Mãe de Jesus, Nazareth, na zona da Galileia (norte do que é hoje Israel). A Imagem, segundo Bernardo de Brito, já teria fama de miraculosa no Médio Oriente logo nos primórdios do cristianismo, antes de terminar o seu percurso peregrino no promontório que teria o seu nome. E aqui terá chegado, enfim, pelas mãos do monge castelhano Frei Romano e de D. Rodrigo, rei dos Visigodos, ambos em fuga da invasão moura, no ano de 711.

Relatos posteriores ao cronista cisterciense, foram mais longe no pormenor da viagem da Imagem e da sua origem, sustentando que o ícone foi esculpido pelo próprio São José e pintado pelo evangelista São Lucas ainda no século I e que terá passado também pelas mãos de São Jerónimo e de Santo Agostinho, entre a Grécia e Hipona, no Norte de África, antes de transitar para o mosteiro de Cauliniana (ou Cauliana) no sul de Espanha e daí para a costa oeste portuguesa.

Esta lenda está também contada num belo retábulo no Santuário do Sítio mas socorremo-nos, no entanto, da narrativa de outro erudito religioso do início do século XVII, Manuel de Brito Alão (entre outras coisas, administrador do Santuário e Casa de Nossa Senhora de Nazaré entre 1608 e 1618, uma história que vale a pena ser contada pela pena deste cronista na sua obra Antiguidade da Sagrada Imagem de Nossa Senhora da Nazaré. Esta obra, recorde-se, foi reeditada recentemente pelas Edições Colibri em parceria com a Confraria de Nossa Senhora da Nazaré, sob coordenação de Pedro Penteado, constituindo este relato também uma janela sobre a forma como os nossos antepassados entendiam e viviam este culto mariano:

DE COMO VEIO DA CIDADE DE NAZARE ESTA SANTA IMAGEM A CASTELA E A ESTE REINO E SÍTIO

No Oriente, e em particular na cidade de Nazaré, floreceu esta Imagem Santa com muitos e manifestos milagres, e como viesse dela por tão insigne e admirável, se deixa bem entender que foi das mais célebres e antigas e chegada ao tempo dos Apóstolos que teve e tem a Cristandade; e ainda que se não sabe o ano certo em que veio de Nazaré a Espanha, ao menos consta que foi antes d’el-Rei Ricaredo, que começou a reinar no ano de Nosso Senhor Jesu Cristo de quinhentos e outenta e seis anos, que há mil e quarenta, pouco mais ou menos, que veio de Nazaré a Espanha a qual trouxe um monge grego chamado Siríaco, em tempo que se levantou nas partes do Oriente uma heresia contra a veneração das imagens, como vereis na pintura desta capela; e vindo a Espanha, a pôs no Mosteiro de Caloniana, de monges, que estava junto à cidade de Mérida, aonde resplandeceu com muitos milagres até a geral ruína de Espanha, causada dos ilícitos amores que teve com a Cava, filha do Conde D. Julião, el-Rei D. Rodrigo, o qual, vindo desbaratado e como trajo mudado, por não correr maior perigo sua vida, por virem os mouros em seu alcance, assolando e destruindo tudo, chegou ao dito Mosteiro de Caloniana, e entrando na igreja, viu os altares nus de ornamentos, por os religiosos os terem levados pera dentro da cidade e pera outras partes mais remotas, fugindo ao destroço que os inimigos vinham fazendo, ficando, contudo, alguns que aguardavam ver o sucesso qual fosse dentro no mosteiro, desejando nele acabar a vida pela Fé de Cristo; e pondo-se el-Rei de joelhos, com muitas lágrimas começou pedir perdão do grande excesso de suas culpas, e com a dor, sentimento e fraqueza grande de lhe faltar o mantimento, junto à aflição do caminho a pé, caiu em terra com u desmaio, sem sentido algum, até vir um monge velho e de vida santa chamado Romano, e chegando-se a el-Rei, Ihe lançou água no rosto e Ihe fez outros medicamentos, com que tornou em si, consolando-o conforme a miséria do estado em que o via.

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Vendo el-Rei a forma em que estava e perigo de sua vida, fez uma confissão geral de todos os seus pecados ao monge Romano, e por eles conheceu quem era, que com muitas lágrimas o consolou, dando-lhe o Santíssimo Sacramento; e vendo que se queria ir para lugar mais remoto da comunicação da gente em que fizesse penitencia, sem enemigos, nem amigos terem notícia de sua pessoa, lhe pediu o monge o quizesse levar consigo para ambos salvarem uma venerável Imagem da Virgem Maria Senhora Nossa, que naquele mosteiro tinha florecido com muitos milagres, e viera de Nazaré em tempo que os hereges se tinham levantado no Oriente contra o culto das imagens, e juntamente salvariam umas relíquias do Apóstolos São Bartolameu e São Brás, que tinha guardadas em um cofre de marfim; e que seria grande descuido e pecado deixá-las oferecidas ao mau tratamento dos bárbaros mauritanos, que não deixavam templo que não profanassem e imagens que não queimassem; o que considerado por el-Rei, veio ao que lhe pediu o monge, e tomando em seus braços esta devota imagem e o monge Romano a caixa das relíquias de São Bartolameu e São Brás, com algum provimento para o caminho, se apartaram de Castela, metendo-se pelo meio de Portugal, levando o rosto ao Ponente, buscando a costa do mar Oceano, por ser terra mais solitária naqueles tempos, onde lhes parecia que os mouros não chegariam tão depressa.

Vinte e dous dias caminharam, os mais deles sem entrarem em povoado, e depois de passarem muitos trabalhos em subir montes e passar rios, tiveram vista do mar Oceano, a vinte e dous de Novembro, com que receberam grande consolação e alívio, dando graças ao Senhor por se verem livres de seus enemigos. O lugar primeiro a que chegaram é agora a vila da Pederneira, que está ao pé deste Sítio, junto da qual se vê no meio de uns areais um monte de áspero rochedo, que vereis tão apinhoado, alto e bem proporcionado, que se vos virdes nele, vos parecerá milagroso, entre estendidos areais que de todas as partes, sem altura, nem rochedo, mostre ter dependência; e como sua compostura leve os olhos de quem o vê, subio el-Rei e o monge, desejosos de chegarem ao alto dele, por ver se era acomodado à sua contemplação, para passarem ali a vida, e subidos a todo cima, acharam uma ermida com um devoto crucifixo, sem algum sinal de gente viva, mais que uma sepultura rasa sem letreiro.

Do sítio do lugar, que tem uma altura notável, se descobre do mar e terra tudo o que os olhos podem alcançar; e a não esperada e repentina vista do crucifixo causou no ânimo d’el-Rei tantas lágrimas e devação que abraçado rompeu em exclamações, vendo que se Ihe oferecia o mesmo Jesu por companhia, e dando-lhe muitas graças e louvores, determinou de passar o que lhe restasse da vida naquele lugar, e assi o declarou ao monge, que por ver o sítio acomodado à contemplação, aprovou o parecer d’el-Rei e se deixou estar com ele alguns dias, nos quais alcançou os inconvenientes que havia para assistir no alto do monte, donde era mui trabalhoso descer a buscar água e mantimento para sua sustentação, e juntamente que a vontade d’el-Rei era estar só e desabafar com lágrimas e exclamações a dor de seu sentimento, diante daquele devoto crucifixo, e de seu consentimento se veio a este Sítio, distante do monte meia légua, onde então tudo eram brenhas e matos intratáveis; e junto a dous penedos, cada um dos quais sai com sua ponta sobre o mar, ficando suspensos no alto da rocha, como vereis, e a altura que tem a pique é mais de duzentas braças, achou entre um e outro o monge Romano uma pequena cova feita naturalmente no rochedo, a qual acrescentou com alguma paredes de pedra ençoso, fabricada per sua mão; e ordenada a modo de ermida, pôs nela esta Sagrada Imagem.

E como este lugar está à vista do monte, de crer é se veriam muitas vezes e teriam colóquios e praticas espirituais conforme à contemplação dos lugares em que estavam, e assistindo o monge na aspereza de entre aqueles penedos em companhia daquela Santa Imagem, onde viveu pouco mais de um ano, e sendo-lhe revelado o tempo de sua morte, o comunicou a el-Rei, pedindo-lhe que, em pago do amor com que o acompanhara, se lembrasse de encomendar a Deus sua alma e dar a seu corpo sepultura, e que havendo-se de partir daquele lugar, deixasse nele esta Santa Imagem e relíquias de São Bartolameu e São Brás, do modo que ele as comporia antes que morresse; e vindo el-Rei daí a poucos dias para o visitar, o achou morto, com que se lhe augmentou muito mais a dor de sua aflição, pela falta de tão virtuoso companheiro, cujo corpo enterrou; e deixando a Santa Imagem e relíquias naquela lapa, na forma que as tinha posto Romano, não podendo sofrer a aspereza do monte, por não ter água, nem cousa que comesse, se partiu deste lugar, não sem muitas lágrimas, por deixar aquela santa companhia; e segundo se afirma, foi ter a Viseu, de cuja penitência e visões se contam muitas e várias cousas, onde morreu.»

Brito Alão tenta ser fiel à versão do seu contemporâneo Bernardo de Brito, mas surgem outros registos, com outro nível de detalhe relativamente à “Imagem Peregrina” e aos passos que deu para chegar ao promontório onde nasceu o Culto. Uma visita à Ermida da Memória nos tempos presentes, de facto, permite ler o letreiro ali inscrito em 1623, que inclui esse roteiro mais completo:

“Como consta da “Monarchia Lusitana” do mesmo frei Bernardo de Brito, 2ª parte, pág. 391, e se acha conforme às tradições antigas, ser esta sacrossanta imagem da Virgem da Nazaré, obrada pelas mãos de S. José, na própria presença da Mãe de Deus, e encarnada por S. Lucas; e que de Nazaré a trouxera Ciríaco, monge, a S. Jerónymo, a Belém, donde o dito santo a enviara a santo Agostinho à África, sendo Bispo de Hipona e d ’ahi, este santo bispo a enviou ao mosteiro Cauleliana (sic), do qual a trouxe Romano na companhia de el-rei D. Rodrigo ùltimo dos godos, até àquele monte de S. Bartholomeu, até então monte de Sião, onde acharam aquele milagroso crucifixo que está na sacristia, e, d’ ahi a dias para este lugar, em que ficou debaixo da terra os ditos 469 anos, em que apareceu ao tal cavaleiro D. Fuas, no dito ano de 1182. O devoto que o letreiro traduziu pede uma Avé-maria a esta Senhora da Nazaré. Anno de 162”.

Na Sacristia do Santuário de Nossa Senhora de Nazaré (Portugal), entre outras obras encontramos um conjunto de pintura seiscentista: o “Ciclo do Arcaz”, da autoria do pintor Luís de Almeida, discípulo de Josefa de Óbidos, sobre a Lenda da Sagrada Imagem de Nossa Senhora da Nazaré. Este conjunto de painéis representa a história da chegada da imagem de Nossa Senhora ao promontório, com os seus protagonistas, D. Rodrigo e Frei Romano e ainda a lenda do milagre de Fuas Roupinho.