HISTÓRIAS QUE TECEM A TRADIÇÃO

O Culto da Nossa Senhora da Nazaré baseia-se em duas lendas fundadoras principais: a viagem da imagem desde a Galileia até ao promontório, sobretudo a etapa final com D. Rodrigo e Frei Romano a trazerem a Imagem até ao promontório onde ainda se ergue o santuário, mas principalmente a do milagre que ocorreu alguns séculos depois a um nobre medieval português por altura da fundação da nacionalidade portuguesa.

D. Fuas Roupinho, alcaide-mor do Castelo de Porto de Mós, companheiro de armas de D. Afonso Henriques na saga da Reconquista Cristã e referido por diversas fontes como o primeiro Almirante português, tinha por hábito caçar nesta região. Segundo a tradição que também ele descobriu a imagem e a venerou. Algum tempo passado, uma manhã de nevoeiro, a 14 de Setembro de 1182, perseguia D. Fuas um belo veado quando o viu desaparecer no precipício. Alarmado pelo perigo, D. Fuas pediu auxílio à Virgem e logo o cavalo estacou salvando a vida ao cavaleiro. Em ação de graças, mandou D. Fuas Roupinho construir a Ermida da Memória.

Venerada desde então, a imagem teria dado origem ao nome do lugar – Sítio de Nossa Senhora de Nazareth.

Frei Bernardo de Brito, na sua obra “Monarchia Lusitana”, de 1609, descreve deste modo a intervenção da Virgem: «(…) sucedeu darem os sabujos com um veado (se porventura o era) e arremessando dom Fuas o cavalo em seu alcance, sem temor de perigo, por cuidar que era tudo campo igual, e a névoa lhe não deixar ver por onde ia, se achou na última ponta do rochedo, que com mais de duzentas braças se deixa cair ao mar, a tempo, que não foi em sua mão ter as rédeas ao ginete, nem houve lugar para mais, que chamar o socorro da Virgem Maria, cuja imagem ali estava, e valeu-lhe ela de modo, que menos de dois palmos do fim da rocha, em uma ponta que faz estreita, e muito comprida, lhe parou o cavalo, como se fora de pedra.»

Esta lenda, de facto, foi contada por muitos autores e de muitas formas diferentes, sempre mantendo os elementos essenciais, mas acrescentando-se uns “pontos” aqui e ali. Como neste exemplo de fino recorte literário e certamente amplas liberdades literárias, de Gentil Marques, no seu Lendas de Portugal, de 1962, que vale a pena reproduzir:

O velho rei ergue a cabeça e olha. Olha e pensa. Pensa e revolta-se. Não se conforma com estar ali, quedo e aborrecido, enquanto seu filho Sancho anda correndo aventuras e perigos no Alentejo e no Algarve. E também enquanto o seu fiel D. Fuas Roupinho se bate, decerto como o valente que sempre é, em Porto de Mós, defrontando um inimigo muito superior em número e em forças…

Não, não está certo! D. Afonso Henriques, o já velho monarca que lançara as raízes do novo reino de Portugal, não pode esconder a sua impaciência.

Estamos no ano de 1180. Mais ou menos a meio do ano. Ficara combinado que el-rei não saísse de Coimbra sem que chegassem notícias de Porto de Mós, ou algum mensageiro dos campos do Alentejo e do Algarve, por onde D. Sancho passeava a sua ânsia de conquista. Mas para D. Afonso Henriques essa espera é longa demais. Para entreter a sua impaciência, percorre a largos passos as câmaras da alcáçova de Coimbra, que já caíra em seu poder. Assoma a uma janela e exclama:

— Porém, que posso eu fazer… senão esperar? Que Deus se amerceie do meu bom Fuas Roupinho e que ele volte depressa à minha presença!

O rei de Portugal retoma o seu passeio. Agitado e inquieto. Não é homem para estar parado. Não é homem para aguardar serenamente os acontecimentos.

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De súbito, um clamor inesperado corre pelas ruas, espalha-se pela cidade e acaba invadindo o próprio paço.

Os sentidos do velho monarca ficam alerta. Será um novo ataque dos mouros?

A resposta não tarda a chegar, com o clamor alegre do povo. Clamor que sobe pela Couraça de Coimbra e que se precipita irresistivelmente ao encontro do velho rei.

E com o clamor vem D. Fuas Roupinho, alcaide de Porto de Mós, trazendo atrás de si um rebanho de mouros, prisioneiros e taciturnos.

— Bravo D. Fuas… Cheguei a recear por vós.

As palavras de el-rei são sinceras, e nelas se mistura a admiração e a amizade.

D. Fuas ajoelha respeitosamente aos pés do rei. Depois ergue-se e diz:

— Senhor, a mihha carne pode ser já velha, mas a moirama ainda não arranjou lanças capazes de me matar…

D. Afonso Henriques sorri.

— Sois sempre o mesmo, D. Fuas! Nem os anos nem as canseiras conseguem quebrantar vossa alma de lutador.

D. Fuas sorri também, ao responder:

— Aprendi convosco, Senhor! Com tal mestre, pena seria que eu saísse mau discípulo…

Foi a vez de rirem ambos. Sentando-se, e convidando D. Fuas a sentar-se, o rei de Portugal pede a D. Fuas que lhe conte tudo quanto se passara.

Em breves e simples palavras, D. Fuas Roupinho conta essa grande aventura.

Em certo momento, talvez porque ousara infiltrar-se demais no campo inimigo, vira-se cercado por forças muito superiores às suas. Reflectira um pouco. Desafiar o inimigo à luz do dia, seria imprudência. Valia mais esperar pela noite…

Assim, quando a noite chegou, arrastados por D. Fuas, os portugueses, poucos embora, num desses lances temerários em que a audácia esmaga o número, caíram de surpresa sobre os mouros, dominando-os por completo…

D. Afonso Henriques escuta-o em silêncio. Mas os olhos d’el-rei exprimem o seu contentamento.

D. Fuas Roupinho manda então que ali mesmo amontoem aos pés do rei de Portugal as armas, as bandeiras e os tesouros que a sua bravura e a dos seus homens tinham sabido conquistar.

Depois, manda que tragam também, pálido e desalentado, o próprio rei mouro Gamir, comandante do exército inimigo.

— Senhor meu rei… Aqui tendes igualmente a vossos pés, Gamir, rei infiel de Mérida, o qual ousou desafiar o vosso poder… Agora, ele é apenas vosso prisioneiro.

O rei mouro deu um passo em frente.

— Tu… Tu és esse Iben Erik de que tanto se fala?…

Faz-se mais pálido. A sua voz transforma-se num murmúrio.

— Agora compreendo!… Com um chefe como tu… com cavaleiros como os teus… nada mais poderemos fazer… Que Alá nos proteja!… Vamos perder todas as nossas terras… todos os nossos tesouros!…

E sem forças para mais, Gamir cai redondo no solo, enquanto um grito aflitivo ecoa pela sala.

— Pai!… Meu querido pai!…

Soldados adiantam-se para separar a jovem que se abraçou ao velho rei mouro, chorando convulsivamente. Mas D. Afonso Henriques suspende-os com um gesto. E logo ali ordena que sejam retiradas as correntes que manietam os dois vencidos, e que passem a ser tratados como verdadeiros cristãos, entregues à guarda de D. Fuas Roupinho.

Entretanto o tempo vai passando, e D. Fuas Roupinho recebe novos encargos do seu rei e senhor. Assim, por incumbência dele, dirige-se a Lisboa, onde apronta uma frota destinada a perseguir as galés sarracenas que infestam o mar.

Pela primeira vez na História, os Portugueses saem a lutar sobre as ondas do oceano. E embora ainda sem grande experiência, conseguem vencer declaradamente os Mouros, sem dúvida muito mais experimentados em batalhas marítimas, travadas ao longo da costa africana.

Foi esta a primeira grande vitória naval dos Portugueses. Animados pelo próprio triunfo, atrevem-se a ir mais longe. Sempre sob o comando do intrépido D. Fuas Roupinho, primeiro almirante de Portugal, avançam até às águas de Ceuta, depois de terem percorrido triunfalmente toda a costa do Sul. E de Ceuta voltam, trazendo apresadas inúmeras embarcações mouras. 

A corte portuguesa veste galas para acolher D. Fuas Roupinho e os seus homens. O rei Afonso abraça o almirante vitorioso e diz-lhe:

— Ide para Porto de Mós, D. Fuas. Caçai e folgai a vosso gosto, que bem ganhastes o direito a descansar dos trabalhos da guerra.

Sem mostrar alegria nem tristeza, D. Fuas limita-se a dizer:

— Cumpro sempre as vossas ordens, sejam elas quais forem, Senhor!

Reza a tradição que, no dia seguinte, D. Fuas se encaminhou para Porto de Mós. E que ali encontrou a jovem princesa moura chorando a morte de seu pai.

Mal vê o alcaide, corre para ele.

— Senhor, senhor, nem sei como agradecer-vos… Mas o senhor meu pai pediu-me que o fizesse, mal vos visse… Fostes tão bom para ele e para mim!

D. Fuas Roupinho não consegue esconder a emoção.

— Graças, princesa. E conformai-vos com paciência. Foi Deus que assim o quis!

Ela ergue para ele os olhos, vermelhos de tanto chorar.

— Deus?… Dissestes Deus?…

E logo, num desabafo íntimo, acrescenta:

— Gostaria de conhecer o vosso Deus… E muito em especial a Mãe desse Deus, que dizem ser tão bom e tão generoso…

De novo, a emoção passa pelos olhos de D. Fuas Roupinho. As suas mãos acariciam os longos e negros cabelos da jovem princesa moura. E promete:

— Amanhã mesmo te levarei a ver a Sua Imagem… uma imagem que eu venero!

Cumprindo o prometido, manhã cedo, D. Fuas Roupinho leva consigo a jovem princesa moura e vai mostrar-lhe a imagem de Nossa Senhora, entre duas rochas, na Nazaré.

Pela primeira vez na sua vida, a filha do rei Gamir cai de joelhos diante de uma imagem cristã.

— É linda a Vossa Senhora… Muito linda!

E D. Fuas Roupinho conta-lhe então, docemente, a história maravilhosa daquela imagem. 

Um monge grego fugira com ela para Belém de Judá, dando-a a São Jerónimo. Este, por sua vez, mandara-a a Santo Agostinho. E Santo Agostinho entregara-a ao Mosteiro de Cauliniana, a uns doze quilómetros de Mérida. Aí puseram à imagem o nome de Nossa Senhora da Nazaré, por ela ter vindo da própria terra natal da Virgem Maria.

Quando os mouros derrotaram os cristãos, obrigando o rei Rodrigo a fugir para Mérida, Rodrigo levou consigo a preciosa imagem. Mas nem mesmo assim se sentiu absolutamente seguro. E resolveu fugir de novo, agora na companhia do abade Frei Romano, possuidor duma preciosa caixa de relíquias que pertencera a Santo Agostinho.

Após uma aventura dramática, quase mortos, os dois homens chegaram ao sítio da Pederneira, na costa do Atlântico. Então, resolveram separar-se.

Rodrigo ficou no monte que se chama de São Bartolomeu e Frei Romano foi viver para o monte fronteiro.

Combinaram, porém, corresponder-se por meio de fogueiras, que acendiam à noite.

Mas, certa noite, a fogueira de Frei Romano não se acendeu. Não mais se acenderia!

Rodrigo acudiu inquieto, e foi encontrá-lo morto. Apavorado, escondeu a imagem e a caixa de relíquias numa lapa, e abalou dali, correndo como um doido.

Segundo conta ainda a tradição, veio a morrer perto de Viseu, num sítio denominado Fetal…

Concluindo a sua história, D. Fuas Roupinho acrescenta, olhando a imagem:

— Só há bem pouco tempo alguns pastores a descobriram, e eu logo me tornei num dos seus maiores devotos. Venero-a com todas as forças da minha alma.

A jovem princesa parece alheada e distante. Olhos fitos na imagem, repete como em oração:

— É linda, a Senhora!… É linda, a Senhora!…

D. Fuas afaga-lhe a cabeça e diz-lhe meigamente:

— Olha, minha filha… Podes ficar aqui a adorá-la o tempo que quiseres. Eu vou caçar. Depois, voltarei a buscar-te.

E é então que se passa algo de extraordinário.

D. Fuas Roupinho monta e galopa pelo campo, quando vê de repente passar junto de si um vulto negro e estranho… É um veado! — pensa ele… Um veado, com certeza!

Sente-se feliz. Não poderia começar melhor a sua caçada. Para mais, um veado como nunca vira em toda a sua vida. Esporeia mais o cavalo. Não pode perder presa de tanto valor… Como num desafio, o veado torna a passar junto dele. Uma vez. Duas vezes. D. Fuas Roupinho sente irromper todo o seu brio. Pois um herói como ele, um homem habituado aos combates mais árduos, vai perder uma tão formidável peça de caça? Nunca! Há-de apanhar o veado, custe o que custar. Esporeia o cavalo até fazer sangue e aproxima-se da presa. Já falta pouco. Está quase a alcançá-lo… De lança em riste, já canta vitória…

Mas, de repente, vê a terra desaparecer sob as patas do cavalo… Está à beira dum precipício, a pique sobre o mar!… Um brado aflitivo sai-lhe da garganta, enquanto o cavalo se empina, relinchando desesperadamente, e o veado se some no espaço, desfazendo-se como fumo:

— Virgem Santíssima, valei-me! Valei-me, minha Nossa Senhora da Nazaré!

Por um instante (parece uma eternidade) cavalo e cavaleiro lutam sobre o abismo. Mas a Virgem ouvira decerto o apelo angustiado de D. Fuas Roupinho. E ele salva-se. Por milagre. Por autêntico milagre!

Nas rochas, ficam marcadas as patas traseiras do cavalo, sinais que ainda hoje ali se podem ver. 

D. Fuas corre ao local onde deixara a jovem princesa junto da imagem de Nossa Senhora. Encolhida a um canto, trémula, o rosto banhado em lágrimas, ela mostra-se aliviada ao vê-lo regressar.

— Oh, senhor, tive tanto medo!… Ainda bem que voltastes!… Passou por aqui um animal medonho… Parecia o Génio do Mal!

— Bem sei… Bem o vi…

E sem mais palavras de momento, o cavaleiro desmonta e ajoelha, rezando fervorosamente, a agradecer à Virgem o auxílio que lhe prestara. De que lhe serviria, afinal, ser um herói como era, se não tivesse a seu lado a protegê-lo a presença milagrosa de Nossa Senhora da Nazaré? Esse, sim, era o maior de todos os prodígios!

E enquanto se ergue, respirando fundo, como que a afastar os últimos temores, D. Fuas Roupinho confessa serenamente:

— Sim, jovem princesa… O monstro que passou por aqui, transformado em veado, era o próprio Demónio… Estive prestes a morrer, tentado por ele, mas Nossa Senhora salvou-me!

E, com súbito entusiasmo, acrescenta:

— Hei-de levar esta imagem para o local do milagre, para o sítio onde tudo aconteceu… Lá ficará, pelos séculos fora, como símbolo do misericordioso poder da Virgem!

E logo dali sai a cumprir a promessa. Às ordens de D. Fuas Roupinho — e, segundo se diz, ajudando-os por suas próprias mãos — pedreiros de Leiria e de Porto de Mós constroem a Capela da Virgem num sítio chamado da Memória, em memória de tão extraordinário milagre que salvara o almirante português de morte certa e brutal.

E a imagem da Virgem Nossa Senhora da Nazaré lá continua a invocar a lenda, atraindo todos os anos milhares e milhares de fiéis, por ocasião das afamadas e tradicionais festas da vila.

MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisboa, Círculo de Leitores, 1997 [1962], Volume IV, pp. 9-14