CANDIDATURA DAS PRÁTICAS E MANIFESTAÇÕES DO CULTO A NOSSA SENHORA DE NAZARÉ A PATRIMÓNIO CULTURAL IMATERIAL

Desde tempos imemoriais que o Culto Mariano, a homenagem à Mãe de Jesus nas suas inúmeras invocações, possui uma profunda presença na religiosidade popular e institucional em Portugal, nação de resto consagrada na sua Fundação à Virgem Maria, no remoto século XII, pelo seu primeiro monarca. Neste contexto, a Nossa Senhora da Nazaré é uma das mais antigas e relevantes manifestações nacionais de devoção mariana, remontando comprovadamente pelo menos ao século XIV, data em que há notícia da ampliação do Santuário. O que significa que esta tradição recuará a tempos ainda mais antigos, tendo origem num Milagre atribuído à Virgem Maria no século XII, no icónico promontório sito na que é hoje a vila da Nazaré.

Segundo a narrativa fundadora desta tradição, estávamos no dia 14 de setembro do ano de 1182 e o nevoeiro era cerrado quando D. Fuas Roupinho lançou o seu cavalo na direção de um veado durante uma caçada nas proximidades do promontório. Apesar da fraca visibilidade, o Alcaide-Mor do castelo de Porto de Mós e ao que tudo indica figura importante na reconquista cristã da Península Ibérica ao tempo do primeiro Rei Português, Afonso I, perseguiu o animal até à beira do penhasco, só se apercebendo quase tarde de mais que aquele tinha caído no abismo e que ele próprio estava na extremidade do rochedo. Nesse momento, o cavaleiro lembrou-se da Imagem de Nossa Senhora da Nazaré com o Menino, ali próximo venerada pelo povo e invocou o seu auxílio para se salvar.

Frei Bernardo de Brito, na sua obra Monarchia Lusitana, de 1609, descreve deste modo inspirado a intervenção da Virgem: «(…) sucedeu darem os sabujos com um veado (se porventura o era) e arremessando dom Fuas o cavalo em seu alcance, sem temor de perigo, por cuidar que era tudo campo igual, e a névoa lhe não deixar ver por onde ia, se achou na última ponta do rochedo, que com mais de duzentas braças se deixa cair ao mar, a tempo, que não foi em sua mão ter as rédeas ao ginete, nem houve lugar para mais, que chamar o socorro da Virgem Maria, cuja imagem ali estava, e valeu-lhe ela de modo, que menos de dois palmos do fim da rocha, em uma ponta que faz estreita, e muito comprida, lhe parou o cavalo, como se fora de pedra.»

Após este acontecimento, que logo atribuiu à graça divina por intermediação da Virgem, Fuas Roupinho foi à gruta onde estava a Imagem de Nossa Senhora para orar e agradecer à sua Protetora, fazendo-lhe também a promessa de erigir naquele mesmo local uma capela em Sua honra, a Ermida da Memória, que ainda hoje existe no Sítio da Nazaré, após muitos melhoramentos.

A Lenda de Nossa Senhora da Nazaré e a história deste Milagre estão, desde então, presentes no imaginário coletivo do povo português. Para a sua divulgação, sobretudo além-mar, em muito contribuíram os missionários Jesuítas, que dedicaram o seu primeiro Noviciado em Portugal à Senhora da Nazaré, mas sobretudo a obra de Bernardo de Brito, monge erudito Cisterciense e cronista do Séc. XVI/XVII que, na sua Monarchia Lusitana, associa o culto medieval da Senhora da Nazaré ao milagre de Fuas Roupinho. Poucos anos depois, em 1627, Manuel Brito Alão, reitor do Santuário, acrescenta mais argumentos ao culto, com a sua obra Antiguidade da Sagrada Imagem de Nossa Senhora de Nazaré.

Segundo a narrativa destes autores, que rapidamente se popularizou, a Imagem da Nossa Senhora da Nazaré ali venerada seria proveniente de Nazaré da Galileia. Autores posteriores, baseados na tradição oral e em documentos que se terão perdido, acrescentaram ter sido esculpida em madeira pelo próprio São José e pintada por São Lucas.

No século IV, de acordo com as mesmas fontes, a Imagem encontrava-se na posse de um monge grego, Ciríaco, que a colocou sob a proteção de São Jerónimo, sendo posteriormente aconselhado por este a levá-la para África, para a entregar a Santo Agostinho, Bispo de Hipona, nome da atual cidade de Annaba, na Argélia. Terá sido, então, Santo Agostinho quem trouxe depois a Imagem para a Península Ibérica, oferecendo-a ao Mosteiro de Cauliniana, situado na região de Mérida, Espanha, tendo realizado aí diversos milagres. A Virgem de Nazaré permaneceu nesse Mosteiro até ao Séc. VIII, aquando da conquista da Península Ibérica pelos Mouros.

Ainda de acordo com esta tradição, após a derrota dos exércitos cristãos na Batalha de Guadalete, o último rei Visigodo, Dom Rodrigo, refugiou-se em Cauliniana, fugindo depois com Frei Romano e levando com eles a Sagrada Imagem de Nossa Senhora da Nazaré, bem como um cofre com as relíquias de São Brás e São Bartolomeu.

Dirigindo-se sempre para Ocidente, os dois chegaram finalmente ao local que é hoje a Pederneira, primeira sede de concelho da Nazaré. Daí avistaram uma ermida abandonada no monte hoje conhecido como Monte de São Brás (e/ou Monte de São Bartolomeu, pois eram de ambos as relíquias), para onde se encaminharam. Quando lá chegaram, D. Rodrigo manifestou vontade de ali permanecer sozinho, pelo que se dirigiu então Frei Romano para o Sítio, hoje chamado Sítio da Nazaré, levando consigo a Imagem da Virgem e o cofre com as relíquias. Ao chegar ao promontório colocou a Imagem e o cofre numa reentrância da rocha.

Quando se separaram, os dois combinaram que apenas quebrariam o seu isolamento para acenderem, cada qual em seu monte e no fim de todas as tardes, uma fogueira, dando sinal um ao outro de que estavam vivos. Isto aconteceu até ao dia em que Dom Rodrigo não avistou o sinal de Frei Romano. Dom Rodrigo dirigiu-se então ao Sítio da Nazaré onde encontrou o seu amigo já morto. O Rei deu então sepultura ao corpo junto à gruta onde estava a Imagem da Senhora da Nazaré e partiu.

A Imagem permaneceu naquele local até ser encontrada já no tempo do Rei D. Afonso Henriques (finais do século XII) pelo Capitão de Porto de Mós, que passou a venerar a Virgem sempre que andava por aquela zona. Sucessivos monarcas portugueses, depois disso, homenagearam a Senhora da Nazaré, em peregrinações ou ordenando acessos, melhoramentos e ampliações do local de Devoção, ao qual afluíram, sobretudo a partir do século XVI, as muitas romarias, peregrinações e círios, oriundos de todo o país em direção ao icónico promontório da Pederneira. O Santuário foi mesmo adotado pelo poder régio como culto de Estado, sendo gerido durante séculos pela entidade antecessora da atual Confraria, a Real Casa de Nossa Senhora da Nazaré, autonomizando-se da tutela do Mosteiro de Alcobaça, que dominava toda aquela região.

Esta é a base lendária de que brotou uma das mais peculiares tradições de religiosidade popular do mundo de língua portuguesa. Uma devoção Mariana que subsiste em manifestações como os Círios ou as inúmeras festividades anuais em honra da Virgem da Nazaré, em Portugal, Brasil ou Angola, além de inúmeras Igrejas e capelas devotadas a este orago mariano.

A história da Vila da Nazaré, hoje sede de um dos mais emblemáticos municípios portugueses, invoca múltiplos pontos de interesse e remete-nos de facto para várias cartografias e imaginários. Para o curioso do passado, o aparecimento do Santuário, no Sítio da Nazaré, e o desenvolvimento da vila, contam uma importante parte da história de Portugal. Uma narrativa que remonta às próprias raízes da nacionalidade e à construção de um país, remetendo mesmo para a herança Visigótica, sendo uma tradição praticamente ininterrupta desde a Idade Média. Para os crentes, a construção da Nazaré é antes de mais um símbolo de Fé, destino milenar de romarias, preces e promessas, ponto nevrálgico de mediação entre o sagrado e o profano, de caráter salvífico, onde os devotos procuram ainda alívio para as suas aflições ou resolução para os seus problemas.

A Nazaré foi durante séculos destino de peregrinação de povo, clero e nobreza indistintamente. Junto à Ermida da Memória, por exemplo, ergue-se um marco, que regista a passagem de uma das maiores figuras da história de Portugal. Vasco da Gama, o Capitão-Mor descobridor do caminho marítimo para a Índia, antes de partir na sua viagem, veio em romaria à Senhora da Nazaré, pedir a sua proteção na viagem, tendo trocado nessa ocasião a cadeia de ouro que usava sobre o gibão pelo colar de contas que pendia do pescoço da imagem da Virgem. A este colar, atribui a Lenda o milagre de ter salvo as naus da armada ao passar o Cabo das Tormentas. Vasco da Gama, no regresso da sua viagem veio, agradecido e devoto, oferecer à Senhora da Nazaré um rico ornamento que ainda hoje ali se guarda, ficando, desde então, o costume de virem em romagem ao santuário da imagem milagrosa, os pilotos, mestres e marinheiros das naus que da Índia e dos remotos mares do Oriente e Ocidente voltavam saudosos à Pátria.

Na mesma época a Rainha D. Leonor de Austria, terceira mulher do Rei D. Manuel I, irmã do imperador Carlos V, permaneceu no Sítio da Nazaré alguns dias, em 1520 num palácio de madeira especialmente concebido para a ocasião. Alguns anos depois S. Francisco Xavier, o Apóstolo do Oriente, veio em peregrinação ao Santuário de Nossa Senhora da Nazaré antes de partir para Goa.

Os três séculos seguintes (XVII, XVIII e XIX), foram de grande expansão para o culto de Nossa Senhora da Nazaré, tanto no seu Santuário, como em Portugal e no “mundo Portugues” da época, onde ainda hoje se veneram algumas réplicas da verdadeira Imagem.

No início do século XVII, o Santuário de Nossa Senhora da Nazaré fundado por D. Fernando começou a ser reconstruído e aumentado, tendo as obras sido prolongadas por várias empreitadas até finais do século XIX.

Hoje, a tradição aponta aos visitantes a marca deixada por uma das patas do cavalo de D. Fuas Roupinho na ponta do Bico do Milagre, ao lado da Capela da Memória no Sítio da Nazaré.

A fama do Milagre e das graças da Virgem da Nazaré foi-se espalhando, foi-se consolidando e a vila que é hoje da Nazaré cresceu à “sombra” desta Lenda e desta Devoção, um dos mais antigos Cultos Marianos português, que perdeu algum fulgor nas últimas décadas, mas que ainda continua vivo em manifestações como o Círio da Prata Grande, a maior peregrinação organizada ainda em curso em Portugal, ou o Círio de Nazaré, em Belém do Pará, Brasil, que costuma congregar mais de dois milhões de fiéis nas ruas da cidade, constituindo a maior manifestação católica da América do Sul. Esta devoção Mariana portuguesa, de facto, tem mais fiéis hoje do outro lado do Atlântico do que no seu país de origem, sendo dezenas as paróquias, círios e templos a ela dedicados no Brasil, onde também é conhecida como Rainha da Amazónia.

Mas, conta também outras histórias de audácia, de desafio ao mar, por destemidos pescadores de outrora, que nas suas frágeis embarcações também honravam a Virgem da Nazaré, padroeira por excelência das atividades náuticas.

Apesar de reconhecida, em particular pelas gerações mais velhas, a Lenda da Imagem de Nossa Senhora da Nazaré é hoje um apontamento na perceção comum da Nazaré. Enquadra-a, é certo, mas será pouco divulgada e enaltecida considerando o seu papel na construção do Sítio da Nazaré, na identidade nacional e na disseminação de uma Fé verdadeiramente global.

O inventário de todos os sítios e manifestações da Senhora da Nazaré no mundo é uma das componentes do trabalho de candidatura das manifestações e práticas do culto a Património Imaterial da Humanidade em curso

A grandeza e significado histórico-cultural é de tal modo importante que, em 2013, as Festas do Círio de Nazaré em Belém do Pará foram consideradas Património Cultural Imaterial da Humanidade, pela UNESCO. Esta celebração tem, afinal, o seu início no modesto Sítio na Nazaré e na história da lendária viagem da Imagem da Virgem Maria da Nazaré, desde a Palestina até à finisterra ibérica.

O Milagre e a história da N. Sra. da Nazaré e as tradições a ela associadas, constituem um bem cultural partilhado em vários pontos do mundo, que responde ao urgente desafio da construção de redes de diálogo entre culturas, do estabelecimento de pontes entre povos e até da promoção do espírito caritativo, compassivo e redentor de Maria, que também é da Nazaré.

Há um caminho bem delineado entre os círios portugueses que se começaram a avolumar nos séculos XVI e XVII e a contemporaneidade massiva dos Círios brasileiros. Um caminho que se inicia com os primeiros devotos portugueses que partiram para “os Brasis”, sobretudo missionários da Companhia de Jesus e colonos, e desagua num número ainda significativo de romeiros portugueses que prestam ainda culto no original Santuário na Nazaré. Todos eles são credores da mesma ideia de Esperança e Salvação que brotou do milagre ancestral de Fuas Roupinho.

Para que estas estórias e este culto possam ser valorizados e amplamente divulgados, mostra-se muito importante candidatar as práticas e manifestações do Culto da Nossa Senhora da Nazaré a Património Cultural Imaterial da Humanidade. O processo será certamente complexo, mas acreditamos que esta tradição genuína de fé, através da intervenção de Nossa Senhora, possa chegar a bom-porto.

Na verdade, a pretensão de candidatar o Culto e a Lenda do Milagre da Nossa Senhora da Nazaré a Património Cultural Imaterial da Humanidade, da UNESCO, visa:

  1. Fortalecer a história milenar de construção de uma fé e de um lugar, uma história e uma devoção materializada em peregrinações que preenchem séculos e cimentam a nossa identidade Cristã.
  2. Promover a salvaguarda de uma importante herança comum e universal, para que não se perca e seja garantida a sua continuidade, através dos caminhos da fé católica de raiz popular.
  3. Fomentar o inter-relacionamento entre os vários locais onde se celebra o culto de Nossa Senhora da Nazaré, dinamizando o sentimento de comunidade entre todos eles.

A intenção de preparação desta candidatura foi apresentada a Sua Santidade o Papa, em Roma, a 14 de novembro de 2018, tendo merecido o melhor acolhimento por parte do Santo Padre. Este acolhimento foi depois formalizado por Sua Eminência Cardeal Gianfranco Ravasi, Presidente do Conselho Pontifício da Cultura, em carta datada de 1 de fevereiro de 2019.

Nossa Senhora de Nazaré, Portugal, Imagem Peregrina no largo do Sítio.

«O culto a Nossa Senhora da Nazaré assume-se como um dos mais antigos processos de legitimização religiosa mariana existentes em Portugal e no mundo lusófono (…) O culto da Senhora da Nazaré, nascido na vila portuguesa estremenha a que deu nome, e que daí transbordou para numerosos espaços metropolitanos e ultramarinos, deve ser considerado uma das maiores manifestações continuadas de hierofania ativa no chamado “mundo português”, com as suas concorridas festividades e a sua sólida estrutura iconográfica de legitimação. Trata-se, assim, de um tema cuja importância religiosa, social, antropológica, patrimonial e também artística, impõe todo um programa de estudos interdisciplinares, ainda não levados verdadeiramente a cabO.
Cremos que é urgente – e inadiável – que os historiadores de arte, os antropólogos, os etnógrafos, os historiadores da Religião e da Espiritualidade, os geógrafos, os iconólogos, os estudiosos da moda, dos usos e costumes e de outros aspectos micro-históricos e demais ramos de saber, se unam um grande projeto de estudo integrado em torno do culto de Nossa Senhora da Nazaré no mundo», Vitor Serrão, Iconografia da Senhora da Nazaré na arte luso-brasileira: o ciclo seiscentista do pintor Luís de Almeida no Santuário de Nossa Senhora da Nazaré. Camões – Revista de Letras e Culturas Lusófonas, nº 25, pp. 79-87., 2016