O círio é sem dúvida a manifestação devocional mais espetacular do culto de Nossa Senhora de Nazaré. Em Portugal e no Brasil, sobretudo, assumem diversas configurações, seja em forma de giro por diversas comunidades como acontece na região Oeste portuguesa, verdadeiras peregrinações organizadas e solenes; seja em forma de procissão percorrendo as principais artérias das cidades, como é o caso dos principais círios brasileiros, como o de Belém, Vigia ou Soure, no Pará, estado que tem a Virgem da Nazaré como padroeira, e que mobilizam cada um deles centenas de milhar de devotos todos os anos. Uma tradição secular, que se manifesta dos dois lados do oceano.

Que significado e origem histórica?

Círio é, indubitavelmente, uma expressão indissociável do fenómeno de peregrinação ao longo dos últimos séculos e importantíssimo para pensar os cultos marianos em Portugal e Brasil. A palavra tem origem no latim “cereu”, de “cera”, e é vulgarmente utilizada para identificar uma vela de cera tradicionalmente colocada perto de uma imagem de devoção. A origem da sua associação a ritos e cerimónias religiosas é de difícil apuramento. É provável que a associação da luz e da cera, seu combustível, a contextos de culto seja um costume milenar, associada a muitíssimas práticas pré-cristãs. Contudo, é num contexto de celebrações e cerimónias religiosas cristãs que esta expressão e conjunto de práticas ganhará destaque, adquirindo um significando mais abrangente.

Nesse contexto cristão, em sentido mais restrito devemos interpretar estas velas como guias, materializando a luz divina que devia acompanhar o penante e peregrino. Em sentido lato estas velas funcionariam como um elemento de identificação da própria comunidade peregrina, que tradicionalmente as ofertavam como ex-voto à divindade no seu santuário. Não obstante ser difícil situar com precisão o início desta prática em solo português, podemos identificar, na obra publicada pelo Padre Brito Alão em 1628, um modelo de procissão e romaria que um século depois já será assimilado na expressão “círio”:

“Entrão os que hão de festejar, & os officiaes em caualos, & rocins muy bons, sendo hum dos principaes o que trás a bandeira com a Imagem da Senhora, penedo, & veado, & todos postos em ordem com attables, & charamellas diante entrão neste sitio, & dão volta por detrás da igreja & se vão aposentar.” (1)

Na verdade, a adoção do termo círio como significante de uma coletividade de peregrinos que se deslocam a determinado santuário, e onde depositam uma vela e/ou bandeira que a identifica, parece só ter ganho popularidade no início do século XVIII. Colocamos a ênfase na palavra coletividade pois será esta uma das mais singulares características dos círios. Poderemos entendê-los, sobretudo a partir do referido século, como irmandades ou confrarias populares de determinada comunidade que se desloca em romaria a um santuário numa iniciativa coletiva. O voto coletivo inicial é muitos vezes mítico, isto é, tem origens difíceis de situar no tempo e no espaço pois constituem heranças de tradição oral. Podemos, no entanto, convocar um fator mais utilitário para a sua constituição. No contexto histórico dos séculos passados, a circulação não seria tão facilitada como hoje e uma deslocação de largos quilómetros exigiria uma preparação que, no contexto de uma organização formal, sairia beneficiada. Poderá pensar-se nos perigos que muitos destes caminhos apresentavam aos peregrinos ou na necessidade de hospedagem em determinados pontos. A formação de confrarias para esta gestão garantia assim a criação de condições mais favoráveis ao cumprimento dos votos pessoais e coletivos.

Contam as fontes que em meados do século XVII se poderiam encontrar círios numa área mais circunscrita ao Norte, Estremadura e região Centro interior, mas é de crer que este fenómeno terá abrangido praticamente todo o país, eventualmente não com a mesma expressão que vamos encontrar nesta geografia. Dos centros de peregrinação mais significativos, aos quais rumavam em peregrinação círios e peregrinos, emergem como os mais populares o Santuário de Nossa Senhora do Cabo, no Cabo Espichel, o Santuário de Nossa Senhora da Atalaia, no Montijo, e o Santuário de Nossa Senhora da Nazaré.

Centrando-nos na Nazaré, a partir da documentação será difícil definir quando terão tido início as peregrinações coletivas ao Sítio. Alguns autores inclinam-se para a hipótese de no século XV este ser já um ponto de significativas romagens coletivas. Todavia, só a partir de inícios do século XVII, verificamos a ocorrência concreta de peregrinações, contando-se os círios, ou confrarias, de Coimbra e de Penela, como as mais antigas.

No Registo de Círios, um documento que lista a vinda de círios e confrarias ao sítio, entre 1799-1908, e inicialmente organizado pelo reitor José de Baptista de Leão, verificamos que o século XIX viu chegar ao Santuário mais de dezassete círios: Caldas da Rainha, Freguesias do Campo de Leiria, Penela, Espinhal, Olhalvo, Leiria, Santarém, Lisboa, Turcifal, Mata Cães, S. Pedro de Dois Portos, Abrigada, Almargem do Bispo, Loures, Prata Grande, Porto de Mós, Aljubarrota.

As muitas comunidades que se deslocaram em peregrinação ao Santuário da Nazaré variaram de ano para ano. Num levantamento efectuado pelo Arquivo Histórico da Confraria de Nossa Senhora da Nazaré foram identificados como tendo vindo à Nazaré os seguintes círios: Abrigada (concelho de Alenquer); Ajuda (de Lisboa); Alcobaça; Alfeizerão; Alhandra; Aljubarrota; Almargem; Alpedriz; Arranhol; Caldas da Rainha; Cela; Colares; Coimbra; Cós; Espinhal, Évora de Alcobaça; Famalicão (da Nazaré); Juncal; Leiria; Leiria (zona rural, mais concretamente: Mata Mourisca; Souto; Coimbrão; Carvide; Maceira; Monte redondo; Amor; Vieira e Monte Real); Lisboa; Loures; Óbidos; Prata Grande (que engloba as seguintes localidades dos concelhos de Mafra e Sintra: Igreja Nova; Mafra; Santo Isidoro; Montelavar; Cheleiros; Encarnação; S. Pedro da Cadeira; Ericeira; Reguengo da Carvoeira; Alcainça; Terrugem; S. João das Lampas; Sobral da Abelheira; Santo Estêvão das Galés; Gradil; Azueira e Enxara do Bispo); Queluz; Maceira; Maiorga; Marinha Grande; Martingança; Mata Cães; Penela; Porto de Mós; Trocifal; São Pedro de Dois Porto; Santarém; Sintra; Olhalvo (concelho de Alenquer) e Tornada.

Não eram só as camadas populares que vinham em peregrinação a Senhora da Nazaré. Os círios eram compostos por pessoas de todas os estratos sociais. Em peregrinação a Virgem vieram igualmente figuras importantes da História de Portugal, como Vasco da Gama e São Francisco Xavier [8] e também vários monarcas [9], entre os quais D. Afonso Henriques; D. Sancho I; D. Fernando; D. João I; D. João II; D. Manuel I e sua terceira mulher Dona Leonor (que terá oferecido ao Santuário aquando da sua visita em 1520 um Calvário flamengo [10]; o Cardeal-Rei D. Henrique; D. João III; D. Sebastião; D. Pedro II e a rainha Dona Maria Sofia; D. José; Dona Maria I; D. João VI; D. Miguel; D. Pedro V; D. Luís; D. Carlos e a rainha Dona Amélia e D. Manuel II.

Hoje subsistem, em Portugal, dois círios que todos os anos se deslocam à Nazaré: o Círio da Prata Grande e o Círio de Olhalvo, em Alenquer.

(1) ALÃO, Padre Manuel de Brito – Antiguidade da Sagrada Imagem de Nossa S. de Nazareth: grandezas de seu sítio, casa, & jurisdição real, sita junto à villa da Pederneira… Lisboa: Pedro Crasbeeck, Reimpressão em Lisboa, na oficina de João Galrão, 1684. – Capítulo XXXI.

Texto IPI Consulting Network

Cartografia que atesta uma presença relevante do culto de Nossa Senhora de Nazaré em Portugal, atraindo círios de uma vasta  região, além de peregrinos individuais oriundos de todo o país. Hoje em dia subsistem os círios de Prata Grande e Olhalvo, da região Oeste.

A base do mapa é da autoria de PENTEADO (1998), p.367, tendo sido depois republicado em:
PEREIRA, Paulo – Lugares Mágicos de Portugal, Cabos do Mundo e Finisterras, Lisboa, Circulo de Leitores, 2004

CONHEÇA ALGUNS DOS CÍRIOS MAIS RELEVANTES

Círio de Nazaré de Belém
Círio da Prata Grande

Chegada de um Círio ao Santuário de Nossa Senhora da Nazaré, Portugal (início do séc. XX)

COIMBRA

O Círio de Ribeira de Frades, Coimbra, realiza-se anualmente, com festas de 13 a 17 de Agosto e tem a característica de não ir à Nazaré, sendo puramente local. Com mais de 500 anos de história, a “viagem do Círio” continua a mobilizar “muitas centenas de pessoas”, num desfile que se realiza no dia 15 e que, ao longo do caminho, «vai juntando várias pessoas das localidades por onde passa, havendo também muitos fiéis que o aguardam nas ruas ou em casa, nas varandas ou janelas, saudando a Santa à sua passagem, lançando-lhe pétalas de flores. Esta tradição continua a juntar, como recorda, pessoas a pé mas também de motorizada, moto, bicicleta, trator e mesmo a cavalo que, numa “procissão” singular, acompanham a imagem de Nossa Senhora da Nazaré».

A “viagem do Círio” começa na monumental Igreja de Santa Cruz, na baixa da cidade de Coimbra, atravessa algumas freguesias do concelho e segue em direção à Igreja Matriz de Ribeira de Frades, onde é celebrada missa solene, seguida de procissão. Findas as celebrações, ao final da tarde, o Círio inicia a viagem de regresso a Santa Cruz.

«A tradição das festas em honra de Nossa Senhora da Nazaré na Ribeira de Frades nasce da visita anual dos frades Crúzios às suas terras e terá mais de 600 anos. Naquela altura, a maior parte dos terrenos da localidade e ainda de Taveiro e do Ameal pertenciam ao Mosteiro de Santa Cruz. Os frades Crúzios vinham junto dos rendeiros no Verão para se abastecerem de legumes, cereais e outros víveres que os mantivessem durante o resto do ano, bem como recolher algumas rendas. O povo de bom grado o fazia, recebendo em troca celebrações, ensinamentos religiosos e espirituais. Terão sido estas visitas dos frades àquelas terras da margem esquerda a gerar a tradição do cortejo entre a Igreja de Santa Cruz – de onde saíam os frades e onde está, durante todo o ano, o Círio de Nossa Senhora da Nazaré – e Ribeira de Frades.

Ancestralmente, era o Superior do Mosteiro quem mandava fazer uma festa, que era orgulho e alegria de todos. Os festejos caracterizavam-se por duas vertentes, uma de doutrinação e cultura e outra, de carácter, digamos mais terrenos, traduzida pela partilha colectiva de um Bodo.
A tradição da partilha do Bodo, centralizado essencialmente na confecção de chafana, passou a realiza-se de forma sistemática, no dia 15 de Agosto (dia da Assunção). Alias a época, o espírito científico e tecnológico difundiram fortemente o estudo do dogma da Assunção, com especial relevo para a Faculdade de Teologia de Coimbra o que em muito contribuiu para a devoção da Nossa Senhora de Nazaré.» (fonte)

NO BRASIL

O Círio de Nazaré é uma manifestação religiosa cristã em devoção a Nossa Senhora de Nazaré, que ocorre no município de Belém, no estado brasileiro do Pará, e em Macapá, capital do estado do Amapá. Celebrado anualmente desde 1793, no segundo domingo de outubro, reunindo cerca de dois milhões de pessoas em todas as romarias e procissões. Uma vocação religiosa herdada dos colonizadores portugueses – em Portugal é celebrado no dia 8 de setembro na vila da Nazaré.

Em outras regiões, devido a migração de paraenses, acabaram criando procissões para sentirem-se próximos de Belém, por meio do ato de Fé. No Brasil, no início, era uma romaria vespertina e até mesmo noturna, daí o uso de velas. No ano de 1854, para evitar a repetição da chuva torrencial como a que havia caído no ano anterior, a procissão passou a ser realizada pela manhã.

O Círio foi instituído em 1793 em Belém do Pará e, até 1882, saía do Palácio do Governo. Em 1882, o bispo Dom Macedo Costa, em acordo com o Presidente da Província, Justino Ferreira Carneiro, instituiu que a partida do Círio seria da Catedral da Sé, em Belém.

O Círio é a maior manifestação cristã do brasil – e um dos maiores eventos do mundo -, reunindo mais de dois milhões de pessoas em uma só manhã. Sendo, em 2004, reconhecido como patrimônio cultural imaterial pelo Iphan e, em dezembro de 2013, declarado Patrimônio Cultural da Humanidade pela UNESCO.

No século XVII, ocorreu a introdução da devoção à Senhora da Nazaré, no Pará, através dos padres jesuítas. Embora o culto tenha se iniciado na cidade de Vigia de Nazaré, a tradição mais conhecida relata que em 1700, Plácido, um caboclo (descendente de portugueses e de índios) andava pelas imediações do então igarapé Murutucu na cidade de Belém (área atualmente corresponde aos fundos da Basílica de Nazaré) quando encontrou uma pequena estátua deteriorada de Nossa Senhora da Nazaré – réplica da estátua em Portugal – entalhada em madeira com aproximadamente 28 cm de altura, entre pedras lodosas.

Plácido levou a imagem para sua residência, onde limpou e improvisou um altar de culto. De acordo com a história da tradição local, a imagem retornou inexplicavelmente ao lugar do achado por diversas ocasiões até que, interpretando o fato como um sinal divino, o caboclo decidiu erguer sozinho uma pequena ermida no local. A divulgação do milagre da imagem, atraiu a atenção dos habitantes da região, que passaram a visitar à capela para homenageá-la. Atraindo também a atenção do então governador da Capitania, D. Francisco Maurício de Sousa Coutinho, que determinou a transferência da imagem para a capela do Palácio da Cidade, em Belém. Porém, mesmo mantida sob a guarda do Palácio, a imagem novamente desapareceu, ressurgindo na capela. Desse modo, a devoção adquiriu caráter oficial, erguendo-se atualmente, no lugar da primitiva ermida, uma capela, hoje a Basílica de Nazaré.

Em 1773 o bispo do Pará, Dom João Evangelista, colocou a cidade de Belém sob a proteção de Nossa Senhora de Nazaré. No início do ano seguinte (1774), a imagem foi enviada a Portugal, onde foi submetida a uma completa restauração. O seu retorno ocorreu em outubro desse mesmo ano, tendo a imagem sido transportada, do porto até ao santuário por fiéis em romaria, acompanhada pelo Governador, pelo Bispo e pelas demais autoridades, civis e eclesiásticas, sendo considerado o primeiro Círio. Desde então, o Círio de Nazaré é realizado anualmente, no segundo domingo do mês de outubro.

Entre os milagres mais expressivos atribuídos à imagem de Belém, encontra-se o que envolveu os passageiros do brigue português “São João Batista”. Partindo de Belém rumo a Lisboa, no dia 11 de Julho de 1846, a embarcação de dois mastros à vela veio a naufragar decorridos poucos dias da partida, sendo os passageiros salvos por um bote que os conduziu de volta a Belém. Este brigue seria a mesma embarcação que, anos antes (1774), havia transportado a imagem de Nossa Senhora de Nazaré a Lisboa, para ser restaurada; o bote também seria o mesmo que levou a imagem ao brigue ancorado em Belém, assim passou a acompanhar a procissão a partir do ano de 1885.

Apesar de o Círio em Belém ser o mais conhecido no Brasil, o mais antigo do Brasil data de 1630 na cidade de Saquarema (Rio de Janeiro). Após noite tempestuosa, a miraculosa imagem da Virgem Maria foi encontrada por pescadores nos penedos que separam o mar da lagoa, onde hoje se encontra a Igreja Matriz. Segundo a lenda, a imagem sempre retornava aos penedos onde fora encontrada, assim os religiosos da época iniciaram à construção de uma capela, que posteriormente mais deu lugar ao templo atual. O Reconhecimento do Círio de Saquarema como o mais antigo do Brasil deu-se com a visita da imagem peregrina de Belém em 23 de setembro de 2009.

(fonte)