Uma Ética de Cuidado pela Casa Comum

«(…) Jesus disse que os olhos são «a lâmpada do corpo» (Mt 6, 22): os olhos de Nossa Senhora sabem iluminar toda a escuridão, reacendem por todo o lado a esperança. O seu olhar, voltado para nós, diz: «Queridos filhos, coragem! Estou aqui Eu, a vossa mãe». (…) Olhar da Mãe, olhar das mães. Um mundo que olha para o futuro, privado de olhar materno, é míope. Aumentará talvez os lucros, mas jamais será capaz de ver, nos homens, filhos. Haverá ganhos, mas não serão para todos. Habitaremos na mesma casa, mas não como irmãos. A família humana fundamenta-se nas mães. Um mundo, onde a ternura materna acaba desclassificada a mero sentimento, poderá ser rico de coisas, mas não rico de amanhã. Mãe de Deus, ensinai-nos o vosso olhar sobre a vida e volvei o vosso olhar para nós, para as nossas misérias. Esses vossos olhos misericordiosos a nós volvei.», Santa Missa na Solenidade de Maria Santíssima Mãe de Deus, 52º Dia Mundial da Paz, homilia do Papa Francisco, Basílica Vaticana, 1 de janeiro de 2019

«Maria, a mãe que cuidou de Jesus, agora cuida com carinho e preocupação materna deste mundo ferido. Assim como chorou com o coração trespassado a morte de Jesus, assim também agora Se compadece do sofrimento dos pobres crucificados e das criaturas deste mundo exterminadas pelo poder humano. Ela vive, com Jesus, completamente transfigurada, e todas as criaturas cantam a sua beleza. É a Mulher «vestida de sol, com a lua debaixo dos pés e com uma coroa de doze estrelas na cabeça» (Ap12, 1). Elevada ao céu, é Mãe e Rainha de toda a criação. No seu corpo glorificado, juntamente com Cristo ressuscitado, parte da criação alcançou toda a plenitude da sua beleza. Maria não só conserva no seu coração toda a vida de Jesus, que «guardava» cuidadosamente (cf.Lc2, 51), mas agora compreende também o sentido de todas as coisas. Por isso, podemos pedir-Lhe que nos ajude a contemplar este mundo com um olhar mais sapiente.». Carta encíclica Laudato si’ do Santo Padre Francisco Sobre o cuidado da casa comum

A Senhora da Nazaré, tema central deste trabalho de reconhecimento patrimonial e cultural, é como todos sabemos, uma invocação Mariana, uma entre muitas no imaginário e nas práticas da devoção popular. Nossa Senhora é muitas e tem muitos nomes porque é antes de mais uma representação simbólica da maternidade, é Mãe, é aquela que, como todas as mães, assiste no sofrimento e protege nas aflições. Cuida e ampara, com amor e ternura. É assim também no caso da Virgem da Nazaré, esta antiga tradição portuguesa, que brotou de um relato medieval de proteção na aflição de um fidalgo que perseguia um veado numa manhã de nevoeiro.

A tradição também conta que essa Imagem já existia na pequena da gruta do promontório da Nazaré, séculos antes de Fuas Roupinho merecer o amparo desta Mãe da Vida, traço comum a todas as Virgens de Leite, como é a Senhora da Nazaré na sua representação original, tal como figura na Imagem que ainda hoje é venerada no Santuário nazareno português: a Mãe que alimenta e protege. Antes de Fuas Roupinho, contam as lendas, já desde o século VIII que a Imagem acudia a romeiros, na lapa que Frei Romano preparara no promontório.

No contexto cristão, também não é por acaso que o atual Papa assumiu com a escolha do seu nome pontifício a sua homenagem a São Francisco de Assis, paladino por excelência do que hoje designaríamos de valores ambientais, sendo assim natural que o Papa Francisco coloque forte tónica na questão ecológica e de um maior cuidado pela natureza. A sua primeira Encíclica (acima citada) versou precisamente esse tema urgente, que torna não só atual como premente a valorização de ícones e tradições marianas como a Senhora da Nazaré, desde sempre associada a meios telúricos, como o mar, a floresta (no Brasil é a Rainha da Amazónia) ou ambientes rurais, como é o caso da região oeste portuguesa, onde são numerosas as comunidades rurais que veneram a Nossa Senhora da Nazaré, invocando a sua proteção nas colheitas ou contra desastres naturais. Temos, aqui, enfim, Maria de Nazaré como protetora desta planetária «casa comum», como foi realçado no recente Sínodo Pan-Amazónico dos Bispos católicos.

Os problemas ambientais, sobretudo a destruição sistemática dos ecossistemas naturais e de modos de vida tradicionais, são sem dúvida, por outro lado, uma das situações mais aflitivas que a humanidade enfrenta. Uma crise que, como não se cansa de sublinhar o Santo Padre, também é uma crise moral, de inversão de valores: a compaixão, a simplicidade, a conciliação e o altruísmo, valores de Maria, substituídos pelo egoísmo, a divisão, o hedonismo e pelo materialismo consumista, que devora recursos e destrói a diversidade da Criação. Urge, portanto, uma ética de cuidado pela Casa Comum, uma mensagem de entrega, de bondade e serviço ao próximo e ao mundo. Ou, para utilizar as palavras do Papa Francisco, urge «um olhar mais sapiente».

Esse olhar também pelos outros e pelo mundo, não só para o mundo, essa entrega e esse desvelo, esse olhar maternal, está também no centro da mensagem ancestral da Nossa Senhora de Nazaré, Mãe da Vida que salva e inspira. E nesta era de incerteza, torna-se cada vez mais pertinente invocar referências morais e éticas voltadas não só para a esperança, como para a ação cuidadora. Os valores associados a este singular título mariano são partilhados por inúmeras comunidades do mundo lusófono, numa diáspora espiritual e cultural. É esse património consolidado e fortalecido por sucessivas gerações que ganha nova importância, renovando-se e incluindo novas “comunidades” sem território, como os surfistas, novos heróis do mar, símbolos por excelência de uma postura de sintonia com o meio natural e de uma ética de sustentabilidade, de cuidado pela tal Casa Comum.

Fazendo nossos os apelos do Santo Padre e do Sínodo dos Bispos que reuniram na Amazónia, exortamos também com esta candidatura das práticas e manifestações associadas ao culto de Nossa Senhora da Nazaré a uma postura ética que renove os votos de Maria e os relance para o novo milénio. Propomos uma espiritualidade de comunhão e humildade perante a maravilha da Vida e da Criação, pela preservação também da humanidade e das suas numerosas identidades, necessidades e manifestações, a «ecologia cultural» e social que urge também cuidar e de que também falou o Papa Francisco na sua encíclica inaugural. Dar ao progresso, enfim, um rosto responsável e humano, integral, generoso e empático. Pois como escreveu o líder católico, «Sempre é possível desenvolver uma nova capacidade de sair de si mesmo rumo ao outro. Sem tal capacidade, não se reconhece às outras criaturas o seu valor, não se sente interesse em cuidar de algo para os outros, não se consegue impor limites para evitar o sofrimento ou a degradação do que nos rodeia. A atitude basilar de se auto-transcender, rompendo com a consciência isolada e a auto-referencialidade, é a raiz que possibilita todo o cuidado dos outros e do meio ambiente; e faz brotar a reacção moral de ter em conta o impacto que possa provocar cada acção e decisão pessoal fora de si mesmo. Quando somos capazes de superar o individualismo, pode-se realmente desenvolver um estilo de vida alternativo e torna-se possível uma mudança relevante na sociedade..».

Nossa Senhora da Nazaré é uma invocação Materna que persiste há mais de meio milénio como farol desses valores de que o mundo carece. Protetora da vida, transporta para o futuro a mensagem intemporal da Paz e do Cuidar, da postura amorosa e atuante. Não só no alívio no sofrimento, mas sobretudo na ética de serviço pelo outro e pelo «bem comum», outro tema frequente do Sumo Pontífice. Esta candidatura, pelo trabalho de revalorização deste património imaterial, de estudo, de divulgação, de conhecimento organizado e aprofundado, de encontro entre comunidades devotas, pretende também renovar esses valores que, sendo de Maria, figura central do específico credo Cristão, são sem dúvida universais.

Texto IPI Consulting Network