Um testemunho pessoal

Portugal e os Portugueses caracterizam-se por uma intensa dedicação ao Culto Mariano.

A devoção que manifestam a Nossa Senhora tem, naturalmente, a sua expressão superlativa hoje em Fátima, cujas aparições comemoraram recentemente, mais exatamente em 2017, o seu 1.º centenário. Mas, anotamos, que há pouco mais de um século, o Culto Mariano mais popular era habitualmente o reunido na Nazaré, celebrando a Senhora que nesse local teve intervenção miraculosa no distante século XII, segundo rezam a lenda e a crença locais.

Faço notar, neste particular, um outro facto notável: seja qual for o Santuário em apreço confluem, nessa devoção genuína, centenas de milhar de Portugueses que atravessam as mais diversas condições sociais, mesmo, religiosas. Dito de outro modo, pelos múltiplos Santuários e Igrejas onde a Senhora é adorada sob as mais diferentes designações – da Senhora de Fátima à de Nazaré, do Sameiro a Vila Viçosa, passando pelas Senhoras dos Remédios, do Ó, dos Aflitos ou da Boa Morte – acotovelam-se anualmente algumas centenas de milhar de Portugueses, provindos dos quatro recantos do país e da diáspora, que se afirmam indistintamente: cristão, católico ou protestante, agnóstico ou ateu, judeu ou animista, budista ou hinduísta… Ou seja, Maria tem um efeito atrator verdadeiramente ecuménico, afirmando-se assim o seu culto como ato autenticamente cultural, situando-se por consequência num patamar claramente superior ao do simples proselitismo religioso.

Ora, a Virgem Maria ocupa, por conseguinte, um lugar especial no coração luso, gozando, entre nós do singular título de Rainha e Padroeira de Portugal. Como tal proclamada por D. João IV nas Cortes de 1646, Nossa Senhora da Imaculada Conceição ocupa na História de Portugal um lugar único na medida em que se torna o fio condutor da independência da Pátria. Esta condição estende-se desde as vitórias de D. Nuno Alvares Pereira de 1383-85, que o levam, em atitude de profundo agradecimento e sincera homenagem a Maria Protetora, a fundar a Igreja de Nossa Senhora do Castelo em Vila Viçosa, templo que o Santo Condestável, São Nuno de Santa Maria, escolhe pessoalmente para sediar a bela imagem da Virgem Padroeira, adquirida em Inglaterra. No seguimento e num percurso de quase três séculos, aquando dos históricos acontecimentos ditos da Restauração, de 1640, somos levados a constatar o reforço solene da espiritualidade imaculista através da coroação de Maria Padroeira de Vila Viçosa, na significativa condição já mencionada de Rainha, a qual se mantém imutável no imaginário lusíada independentemente da transformação circunstancial do regime político de Monarquia em República, ocorrida em 1910.

A festividade de 8 de Dezembro mantém-se como feriado nacional, não obstante tentativas, promovidas por um pretenso fundamentalismo laicismo, de o abortar, que se viram felizmente revertidas. É, com efeito, nessa data que o Papa Pio IX declara, através da bula Ineffabilis Deus (1854), com a devida solenidade, o dogma da Imaculada Conceição. Por isso, é precisamente nessa data que nós Portugueses nos damos ao luxo de celebrar a festa religiosa da Imaculada Virgem em conjunto com a da independência e liberdade de Portugal, a nação europeia mais idosa, com fronteiras estáveis.

Assim, do mesmo modo, na invocação do 5.º Mistério Glorioso, na poderosa oração do Rosário que a Virgem expressamente encomenda aos pastorinhos de Fátima, somos conduzidos a meditar sobre a Coroação da Virgem Maria, Rainha do Céu, da Terra e de Portugal.

Convém, em complemento, assinalar que os cristãos se consideram irmanados por via da fraternidade em Jesus Cristo. Esse sentimento fundamental de Irmandade tem a sua origem na partilha de um Deus Pai comum. Mas ele decorre, também, de termos uma Mãe comum que, como recitamos na trilogia de Avé Marias com que habitualmente encerramos a oração do Terço (hoje “Quarto” com a oportuna introdução, pelo Papa João Paulo II, dos Mistérios Luminosos) reúne, a um tempo, segundo uma relação privilegiada, única, com a Divindade Trinitária, as condições de Filha de Deus Pai, Mãe de Deus Filho e Esposa de Deus Espírito Santo.

A Senhora da Nazaré tem a virtude, entre outras, de lembrar que o nosso Culto venerando a Nossa Senhora data do princípio da nacionalidade. Mais exatamente, a crença que consiste no salvamento de D. Fuas Roupinho de se despenhar no Bico do Milagre, remonta a mais de 800 anos (1182), cerca de 40, apenas, decorridos sobre a fundação da nossa nacionalidade.

A UNESCO será com certeza sensível aos argumentos reunidos para propor a elevação do Culto de Nossa Senhora da Nazaré a Património Cultural Imaterial da Humanidade. Na verdade, a candidatura em questão reúne todas e cada uma das quatro condições identificadas na Convenção aprovada na 32ª Sessão da Conferência Geral, anual, da UNESCO, que teve lugar a 17 de Outubro de 2003, a saber:

1. Reconhecer-se-á o Culto como integrante pleno do património cultural imaterial cuja salvaguarda se almeja com o devido reconhecimento por parte da UNESCO.

2. Ver-se-ão, por esta justa via, plenamente contemplados o património cultural imaterial por ele corporizado, assim como o desejo de vastas e representativas comunidades, grupos e pessoas.

3. Mutatis mutandis, consagrar-se-á a notável expressão local, nacional e internacional desse Culto, o qual cobre já um expressivo número de Nações de expressão portuguesa e não só. A este propósito, não será demais realçar que esta candidatura é subscrita pela Câmara Municipal da Nazaré, com o apoio do Estado do Pará já formalizado através de protocolo de cooperação, tendo por pano de fundo que na capital paraense, Belém, se concentra a manifestação demograficamente mais expressiva do Culto regular ao Círio da Nazaré ou à Rainha da Amazónia, designação popular local, atribuído à Senhora da Nazaré.

4. Permitir-se-á fomento incrementado da cooperação internacional em torno da salvaguarda de uma importantíssima realidade cultural que, atravessando fronteiras político-geográficas, e os mais variados continentes, contém, em si própria, um valor inequívoco de diversidade cultural e antropológica que importa proteger e acarinhar.

Por este vasto conjunto de razões não hesito em dar o meu apoio entusiástico ao movimento, capitaneado pela Câmara Municipal da Nazaré e pelo Professor Carlos Medeiros, que espontaneamente se gerou em torno da candidatura do Culto de Nossa Senhora da Nazaré a Património Cultural Imaterial da Humanidade, conforme Declaração esperada pela UNESCO, conhecida, e bem, por ser a consciência moral da Organização das Nações Unidas.

Roberto Carneiro
Professor e Investigador Jubilado da Universidade Católica Portuguesa (UCP)
Presidente Emérito do Centro de Estudos dos Povos e Culturas de Expressão Portuguesa da UCP
Presidente da Fundação Escola Portuguesa de Macau
Ex-Ministro da Educação
Ex-Secretário de Estado da Administração Regional e Local
Linda a Velha, aos 12 de Março de 2020.