O CICLO SEISCENTISTA DO PINTOR LUÍS DE ALMEIDA NO SANTUÁRIO DE NOSSA SENHORA DA NAZARÉ

A Imperiosidade de um projecto integrado de estudos sobre o Culto da Senhora da Nazaré

O culto a Nossa Senhora da Nazaré assume-se como um dos mais antigos processos de legitimação religiosa mariana existentes em Portugal e no mundo lusófono. No momento em que se comemora o quarto centenário da fundação de Belém do Pará, uma cidade dos trópicos onde este culto perdura em vicejantes contornos festivos e devocionais, é importante analisar os aspectos relacionados com a sua representação imagética, já que foram estes que suportaram o vasto processo de expansão geográfica a que deu origem.

Trata-se de um surto devocional de seculares origens, que paulatinamente se afirmou a partir do seu santuário-berço, no Sítio da Nazaré, e que após o século XVII conhecerá grandiosas ramificações um pouco por todos os espaços lusófonos, Ainda que tenha expressão numerosa e qualificada em vários territórios do antigo império português, seja em Angola, São Tomé e Príncipe ou Goa, vai ser sobretudo no Brasil que este culto atinge o seu climax, já no declinar do século XVIII, com as grandes manifestações culturais promovidas pelo Santuário da Senhora em Belém de Pará e com o Seu célebre Cirio, classificado como património imaterial pela UNESCO.

Saído de Portugal no século XVII, como melhor veremos adiante, o culto da Senhora da Nazaré irá fortalecer-se nas suas várias expressões de acolhimento espiritual, através de respostas frequentemente sincréticas, que tendem a oscilar, nas estruturas de organização da festividade peregrinatória, entre a componente erudita e a dimensão popular, com contornos simultâneos de sagrado e de profano, unindo diferentes credos, culturas, dialectos, vidas, usos e costumes, modos e visões, tal como sucede de forma inequívoca no famoso Cirio paraense, com o seu milhão e meio de peregrinos vindos de todo o mundo.

O culto da Senhora da Nazaré, nascido na vila portuguesa estremenha a que deu nome, e que daí transbordou para numerosos espaços metropolitanos e ultramarinos, deve ser considerado uma das maiores manifestações continuadas de hierofania ativa no chamado “mundo português”, com as suas concorridas festividades e a sua sólida estrutura iconográfica de legitimação. Trata-se, assim, de um tema cuja importância religiosa, social, antropológica, patrimonial e também artística, impõe todo um programa de estudos interdisciplinares, ainda não levados verdadeiramente a cabo.

Cremos que é urgente – e inadiável – que os historiadores de arte, os antropólogos, os etnógrafos, os historiadores da Religião e da Espiritualidade, os geógrafos, os iconólogos, os estudiosos da moda, dos usos e costumes e de outros aspectos micro-históricos e demais ramos de saber, se unam um grande projeto de estudo integrado em torno do culto de Nossa Senhora da Nazaré no mundo. Alguns autores destacaram já a impressionante força telúrica do Sitio, na força da sua paisagem, com a escarpa do promontório espraiada sobre o mar bravio, como fator que ajudou, por certo, a criar uma ambiência adequada a esse profundo sentido hierofânico por parte de populações piscatóricas junto da lapa roqueira na base da Ermida da Memória, onde a tradição diz ter sido achada a milagrosa imagem.

A Historia da Arte, a Iconografia e a Iconologia assumem neste temário um papel fundamental. Importa-nos saber, por exemplo, quantas capelas se ergueram sob o culto de Nossa Senhora da Nazaré, que irmandades se formaram, que festas e cirios existiram e perduraram até aos nossos dias, quem as promoveu, quais as suas características e diversidades, que ritos e iconografias a ele se associaram, que linhas de encontro cultural se abriram sob o signo da Senhora da Nazaré, que tipos de figuração da Senhora se sucederam — em Suma, qual a geografia, a expressão global e a simbologia imagética que envolveram o culto.

A verdade é que pouco sabemos ainda a este propósito, de forma sistematizada, pese o caudal de informação esparsa já reunido a propósito das suas especificidades localizadas. Um dos livros fundamentais que veio re-legitimar o historial do culto e torná-lo tão popular dentro e fora das fronteiras Portuguesas, levando-o assim aos confins do império, foi a Antiguidade da Sagrada Imagem de Nossa Sra da Nazareth da autoria do padre Manuel de Brito Alão, editado em Lisboa em 1618. A seguir a Frei Bernardo de Brito e às demais crónicas alcobacenses, que relataram as primícias deste culto em tons laudatórios em mais ou menos velado discursos patrióticos, os dois livros de Brito Alão (1554-1638) fixaram os contornos lendários do culto, acentuaram a sua valência em termos nacionais, através da retórica da parenética e do rosário de milagres atribuídos à intercessão da Senhora, e abriu portas para que muitos devotos levassem o culto para longínquas paragens. O padre Alão não era um mero curioso de província extasiado por um evento transcendente: era homem com sólida formação teológica e com bases humanísticas, fora pajem de D. Frei Bartolomeu dos Mártires (Arcebispo de Braga), e assumira o Cargo de administrador responsável da Confraria e Casa Real, por méritos próprios. Enfim, coube ao frade agostiniano Frei Agostinho de Santa Maria no seu famoso Santuário Mariano, saído já no dealbar do século XVIII, registar no tomo VIII dessa obra (1720) o sucesso que a natural expansão do culto da Senhora da Nazaré atingiu em poucos decénios nos territórios portugueses das Américas, de África e do Oriente.

É por isso que é tão importante estudar-se a encomenda que a Confraria de Nossa Senhora da Nazaré fez, por volta de 1675, ao pintor Luís de Almeida para que executasse uma série de telas alusivas às primícias do culto no Sitio da Nazaré, com a narração lendária dos episódios do milagroso achado da imagem, desde a saída da imagem do mosteiro de Cauliniana, em Mérida, passando pela batalha de Guadalete, até ao chamado milagre de D. Fuas Roupinho em 1182, contadas numa série de boas telas proto-barrocas que ornam o arcaz da sacristia do santuário. O Milagre de D. Fuas Roupinho, Alcaide de Porto de Mós, alegadamente em 14 de setembro de 1182, no Sitio da Pederneira, por intercessão da Senhora da Nazaré, passa com o primeiro livro de Manuel de Brito Alão, de 1609, e a gravura que o ilustra, a constituir prova sólida da ancianidade do culto, assim remontando, pela tradição, ao século XII. Este milagre constitui o corolário das histórias pintadas por Luís de Almeida. Aí se fixaram, de maneira definitiva, tanto o substrato iconográfico da Senhora. Como o historial lendário do culto.

As origens medievais do Culto e a base iconográfica da representação da Senhora

Tudo gira em torno do famoso milagre de D. Fuas Roupinho em 1184. Ainda que continue a ser matéria de largas discussões a data segura da origem e instituição do culto — que todavia era já uma realidade bem cimentada no início do século XVII -, a verdade histórica conduz-nos ao século XIV, tempo em que existem testemunhos da práticas cultuais em torno da Senhora da Nazaré.

A crítica das fontes, elaborada rigorosamente pelo historiador Pedro Penteado, conduz-nos a uma série de constatações seguras. É dado sólido, assim, que esse culto, em 1377, já era praticado em terras da Nazaré, em torno de uma ermida que se considera fundada pelo rei D. Fernando, e onde se venerava uma arcana escultura gótica da Virgem do Leite que, segundo a tradição, passara a ser identificada pelos devotos como Senhora da Nazaré.

A História da Arte e a iconografia reforçam a informação das fontes escritas. Essa escultura medieval – matriz de série -, ornada com seu manto bordado setecentista que chegou aos nossos dias e se encontra nos acervos museológicos do Santuário, mostra a sua óbvia filiação no culto da Senhora do Leite. Mas a iconografia de Nossa Senhora da Nazaré não é fixada apenas por esta peça: também nos chegou uma outra escultura de pedra, ainda de tradição goticizante, obra de artista regional do fim do século XVI, onde à representação da Virgem se acrescenta a de D. Fuas Roupinho. Encontra-se no Museu Etnográfico Dr. Joaquim Manso, na Nazaré, e trata-se de exemplar raríssimo de junção da iconografia de D. Fuas ao módulo original, num deliberado esforço da Confraria em nacionalizar e projetar o culto.

Uma bula papal do século XIV, confirmou o culto da Senhora da Nazaré, e torna essa anciana prática hierofânica em torno do sítio do primeiro achamento da imagem um ato oficial, digamos assim, que tende a enraizar-se nos tempos e a ganhar vivências continuadas, que explicam a sua perpetuação. Os primeiros cirios devocionais terão ocorrido mais tarde, luz da paulatina fixação das primitivas práticas devocionais. Dessa origem quatrocentista nos dão conta as fontes cronísticas mais antigas, com realce para o citado livro de Manuel de Brito Alão que, no historial do santuário publicado em 1618, elenca atestações de ancianidade para o culto, mais referindo, também, o caso das individualidades que no século XVI vinham prestar veneração à Senhora da Nazaré, caso do navegador Vasco da Gama e, mesmo, de São Francisco Xavier.

Em termos de documentação remanescente (em que o santuário é bastante rico, com o seu cartório praticamente incólume), não podemos afirmar com certeza a data remota que deu origem ao culto da Nossa Senhora da Nazaré. Certo é que no século XIV a bula papal atrás referida já contemplava o culto. Segundo constata Pedro Penteado, a história deste lugar sagrado surge verdadeiramente bem documentada a partir do século XVII, quando se ergueu o Santuário e começaram as concorridas procissões cíclicas à Senhora.

Se em 1648 o Sitio era ainda muito desabitado, com apenas trinta casas além da Ermida da Memória e do Santuário recém-erigido, além de estrebarias, um forno de cal e um fontenário, a verdade é que tudo se vai desenvolver a ritmo crescente, fruto de procissões cada vez mais imponentes e da carga sacralizada do lugar. A respeito do Cirio da Prata Grande, uma das referências peregrinatórias do culto à Senhora, afirma Pedro Penteado que, à margem de esporádicas romarias coletivas, só a partir de 1608 se documentam cíclicas visitas de peregrinos ao Sítio, e só com a construção do Santuário começaram a desenvolver-se as grandiosas peregrinações, com bodo, cirio, inclusão de berlindas, “casas grandes de romeiros”, e o natural surgimento de um núcleo habitacional em torno do Sitio. A força popular das festividades atinge então o seu clímax, e só no passado século o fenómeno do novo culto de Nossa Senhora de Fátima tenderá a enfraquecer o impacto da devoção do Sitio, ao mesmo tempo que ele tende a renascer, ainda mais forte e sincrético, em terras de Belém do Para, no Brasil amazónico.

Conclui-se, voltando à análise da primeira imagem existente da Senhora da Nazaré (a qual, como vimos, data do século XIV tardio ou já das primícias do XV), que a iconografia fixada para este culto derivou das representações tradicionais da Senhora do Leite, e será esse modelo que doravante será usado pela Senhora da Nazaré, dentro e fora de Portugal. A iconografia mariana da primeira Senhora da Nazaré é de facto muito peculiar: trata-se de uma representação plástica de artífice gótico (ainda que a tradição recolhida por Frei Bernardo de Brito a julgasse lavrada pelo próprio São José «ao natural» e trazida da Palestina para Mérida no século IV), que segue o modelo iconográfico das Nossas Senhoras do Leite, mesclado com o tipo paleocristäo das Virgens em Majestade, e ainda com o tipo oriental da chamada Virgem Negra, de cor trigueira. Essa coloração de pele manter-se-á, doravante, em toda a iconografia da Senhora, tanto em Portugal como no Brasil e, de modo explícito, nas representações de Belém do Pará. No Caso do Santuário paraense (traça do arquiteto florentino Gino Coppedé, de 1913), a primitiva imagem setecentista (também dentro da tradição da Senhora do Leite) deu origem a novas versões para saírem na berlinda com os Cirios, a última das quais data de 1969 e é Obra encomendada pelo padre Miguel Giambelli ao escultor italiano Giacomo Mussner. Por curiosidade, tem feições amazónicas e o Menino revela traços miscigenados de índio e caboclo. O espirito sincrético nunca deixou de se manifestar com força neste culto e é um dos Seus mais marcantes traços identitários.

A afirmação do Culto à luz do nacionalismo restauracionista

Desde que o rei D. João II ordenou obras importantes na primitiva Ermida do Sítio, e que sua mulher D. Leonor ordenou a factura da torre-campanário, seguindo-se com D. Manuel I a obra dos alpendres, o Santuário da Senhora da Nazaré não deixou de crescer em popularidade e número de peregrinos. Com o reinado de D. Sebastião, e por iniciativa da corte, a antiga Ermida da Memória foi colocada sob jurisdição régia e alvo de novas obras.

Mas continuava a ser um culto mariano regional, apesar da chama aurática da devoção e do número crescente de Romeiros. Será só no início do século XVII, em plena Monarquia Dual, tempo de ampliação do templo sob traças do arquiteto régio Luís de Frias, autores como Frei Bernardo de Brito ou o Padre Manuel de Brito Alão, já citados, vieram fortalecer os laços do culto da Senhora da Nazaré à Monarquia portuguesa e proteção régia, seguindo, ambos, intuitos parenéticos de mais ou menos evidente sinal patriótico e anti-castelhano.

Tal relação não foi pacifica, como nos diz Pedro Penteado, pois surgiram rivalidades entre o Dom Abade de Alcobaça e a Confraria, concorrendo nas memórias da lenda para a reivindicação da posse e dos direitos sobre a confraria da Senhora da Nazaré, no Sitio.

Os círios, com os seus bodos e as demais festividades inerentes, multiplicam-se nos séculos XVII e XVIII, primeiro pelas terras da província da Estremadura portuguesa e do Ribatejo, abarcando de seguida toda a chamada região saloia, até Setúbal e ao Cabo Espichel – outro santuário de culto mariano já muito concorrido época — acentuado o fato de que este culto nasceu sob a égide de marítimos, de Pescadores e de mareantes.

Assim sendo, tratando-se de um culto mariano que tem relevo na assistência espiritual aos Pescadores, aos embarcados e aos náufragos, é perfeitamente explícito que o seu culto seguisse o rumo das viagens marítimas dos portugueses e que numerosas capelas com a mesma invocação se multiplicassem pelo império. O poder de atração devocional do Sitio traz à Nazaré, a partir da Restauração de D. João IV, todos os reis brigantinos e as figuras gradas da corte de Lisboa. O sentido parenético e nacionalista extravasa do culto da imagem da Senhora da Nazaré no Sitio da Nazaré, tão ligada à Reconquista cristã e com uma história tradicional de lendas e maravilhas.

Assim, de culto regional localizado e restrito, Nossa Senhora da Nazaré conquista os espaços lusófonos e segue a bordo dos navegadores portugueses que partiam para o Brasil ou para o Oriente, levando a imagem, a tradição das festividades de origem e o impacto da proteção milagrosa da devoção.

Desse modo se criam, de Angola a São Tomé ou a Goa, capelas da invocação da Senhora da Nazaré, gerando novas confrarias e promovendo festividades inspiradas nas que ocorriam no santuário-mãe, na Nazaré.

Apesar de alguma controvérsia quanto à introdução oficiosa do culto, sabe-se que se fixou no lugar da Vigia da Nazaré, onde a igreja matriz (que desde as suas primícias adquire um figurino de templo de peregrinação) cultuava a Senhora da Nazaré. De seguida, o culto impõe-se e chega com forte impacto a Belém do Pará: vai assumir um desenvolvimento especial após a alegada descoberta de uma imagem da Senhora, em 1700, um achamento atribuído ao caboclo Plácido, tal como se representa num vitral de 1915 no Santuário de Nossa Senhora da Nazaré, em Belém do Pará.

Assim, esse achado ocasional da imagem num igarapé de Belém – que mais não é do que a transposição do milagre da descoberta da imagem na lapa do Sitio da Nazaré, em Portugal – origina um foco cultual e uma festividade que não mais deixará de se reforçar, e se mantém até hoje, cada vez mais forte, com seu famosíssimo Cirio, com os seus romeiros de corda, peregrinação da berlinda e demais festas adjacentes.

Luís de Almeida e o estabelecimento de uma iconografia para a lenda da Senhora da Nazaré

Quando em 1626, no âmbito das estratégias de controlo territorial e político sobre o Sitio hierofânico da Nazaré, a primitiva igreja medieval foi ampliada com traça mais ampla e condigna, foi necessário reforçar significativamente a legitimação do Velho culto, dando-lhe uma dimensão mais ampla. À medida que as obras da igreja avançaram, ao longo do século XVII, o espaço foi decorado com recheios destacados como a talha dourada barroca dos altares e o trono da Senhora da Nazaré, lavrado em 1683 pelo escultor Manuel Garcia, antes de receber, já no início de Setecentos, a primorosa azulejaria de António de Oliveira Bernardes e do holandês Willem van Kloet.

Por essa via, também se reformulou a iconografia da Senhora e o historial relacionado com a imagem, de molde a servir um culto que se popularizara imenso, e cedo iria extravasar para os espaços ultramarinos do Império português. Foi nesse sentido que se chamou o pintor lisboeta Luís de Almeida para executar uma série de telas com os passos da iconografia da Senhora da Nazaré e a lenda de D. Fuas Roupinho, com intuito de reforçar o sentido da lenda e de creditar o culto multissecular num santuário onde a fama de milagres se multiplicava.

O pintor Luís de Almeida (ativo em 1660-1680), formado na «escola de Óbidos», trabalhou na região alcobacense no último terço do século XVII. Nascido em Lisboa, este pintor de bitola discreta aprendeu os modelos tenebristas e naturalistas do Barroco nascente junto famosa pintora Josefa de Ayala (1630-1684) na Vila de Óbidos. Fruto dessa lição nos círculos de Josefa de Óbidos, o pintor irá pintar uma réplica do Casamento Místico de Santa Catarina, que assinou.

Esta pequena tábua, de cerca de 1660-70, é absolutamente similar ao cobre de Josefa de Óbidos assinado e datado de 1647, que se expõe no Museu Nacional de Arte Antiga.

As debilidades de Luís de Almeida atestam-se na sua própria produção de cavalete, em que se destaca a série de telas com a Lenda de Nossa Senhora da Nazaré pintadas para o arcaz da sacristia do Santuário de Nossa Senhora da Nazaré, no Sitio da Nazaré.

Apesar de se tratar de artista de segunda plana, a escolha dos mesários da confraria parece ter sido adequada, pois as pinturas traduzem com clareza os objetivos essenciais da encomenda: sentido de narratividade e poder de ilustração. As telas de Luís de Almeida mostram-no muito eficaz sob esse prisma: de facto, a série de telas do arcaz cumprem bem o seu papel de legitimadoras de uma lenda destinada a ser contada de viva voz por gerações de peregrinos e servir como espécie de atestado verídico do milagre.

Deste artista se sabe, ainda, que em 1677 estava a trabalhar como pintor encarnador e estofador de imagens na Igreja de Santo Estevão de Alfama, em Lisboa, o que atesta a sua condição de pintor subalterno, ligado a várias modalidades da arte, além da prática de cavalete, pois tanto pintava a óleo como dourava, estofava e policromava.

Pintadas cerca de 1675-1680, as doze telas da Lenda da Senhora da Nazaré — duas das quais estão assinadas por Luís de Almeida — têm um interesse que é sobretudo de ordem histórica e iconográfica, sendo significativo que constituem o primeiro testemunho imagético conhecido sobre a lenda que envolve a descoberta e sucessivos “achamentos” da imagem da Senhora, nas suas variadas facetas e peripécias históricas.

O conjunto de telas do arcaz da sacristia situa-se dentro do grande esforço desenvolvido no sentido de “nacionalizar” o Santuário da Senhora da Nazaré e lhe conferir uma iconografia credível, segundo o espírito nacionalista e pró-restauracionista que se seguiu a 1640. Assim, a Confraria de Nossa Senhora da Nazaré encomendou essa série de doze quadros com o objetivo de fixar uma espécie de narração oficial para a lenda e legitimar a tese da antiguidade do Santuário português.

Entre as histórias representadas, vê-se numa das cenas a chegada de Frei Ciríaco ao Mosteiro de Cauliniana (Mérida) com a imagem de Nossa Senhora da Nazaré, num outro, o rei visigodo Rodrigo, fugitivo da batalha de Guadalete, segurando a imagem, depois de, face à iminente derrota, se despojar dos seus trajes áulicos e mudar de vestimenta com um mendigo a fim de empreender a fuga; seguem-se as peripécias de Frei Romano, que com Rodrigo conduz a imagem da Senhora até ao litoral da península, guardando-a numa lapa junto ao Sitio da Nazaré; a imagem, quatro séculos volvidos, é descoberta por Pescadores que passam a venerá-la; enfim, representa-se o milagre do alcaide-mor de Porto de Mós, D. Fuas Roupinho, salvo pela Virgem, em 1182, de cair no precipício, mandando então construir nesse lugar a Ermida da Memória.

Apesar da ingenuidade destas pinturas, o seu interesse iconográfico é muito destacado e mostra que Luís de Almeida se soube informar, junto dos membros da Confraria (e seguindo provavelmente o que diz Manuel de Brito Alão, decerto uma das suas fontes), a fim de tornar credíveis as doze histórias da narração imagética por si pintada.

A lenda recolhida por Brito Alão diz-nos que a imagem da Senhora da Nazaré foi esculpida pelo próprio São José, e que aquando da perseguição aos cristãos no século III fora trazida desde a Palestina até ao Mosteiro de Cauliniana (Mérida) pelo monge grego Ciríaco. Este tema é tratado nas duas primeiras telas. A pequena escultura esteve nessa casa religiosa até 714, aquando da invasão árabe da Peninsula, e da batalha de Guadalete, vendo-se o rei visigodo Rodrigo a fugir da refrega, depois de trocar de vestes com um mendigo, e buscando abrigo nesse mosteiro. Devido ao avanço islâmico, o rei Rodrigo e Frei Romano tomaram o caminho do extremo ocidental da Península Ibérica, levando consigo a pequena imagem da Senhora, temas também tratado nas telas.

Chegados em 22 de novembro de 714 ao Monte de São Bartolomeu, junto à antiga Vila da Pederneira (Nazaré), viveram como eremitas, entre lapas, comunicando por sinais de fogo. Quando o monge Romano morreu, D. Rodrigo enterrou-o e, cheio de tristeza, partiu para Viseu, tendo a imagem ficado escondida numa fraga no Promontório do Sítio. Perdeu-se entretanto a memória do lugar de abrigo da mesma, e Só muito mais tarde, em 14 de setembro de 1182, o alcaide-mor de Porto de Mós D. Fuas Roupinho, durante uma caçada em dia de nevoeiro, invocou a Virgem da Nazaré e escapou da morte que o diabo-veado lhe preparava.

O culto da Senhora começa verdadeiramente nesse dia; construiu-se uma Ermida no Sítio e com o tempo muitos peregrinos começam a vir à Nazaré.

As pinturas, colocadas acima dos arcazes da Sacristia, representam os seguintes temas: o PAINEL I representa a perseguição aos cristãos na cidade de Nazaré perseguição ao monge grego Ciríaco, que leva a imagem da senhora para o mosteiro de Hipona; o PAINEL II mostra a Chegada de Frei Ciríaco ao Mosteiro de Cauliniana (Mérida) com a imagem de Nossa Senhora da Nazaré; o Painel Ill trata do episódio O Rei Rodrigo fugindo da Batalha de Guadalete, aludindo ao momento em que o rei, após a derrota, se despoja dos Seus trajes áulicos e muda de vestimenta com um mendigo a fim de empreender a fuga; o PAINEL IV representa D. Rodrigo dando entrada no Mosteiro de Cauliniana após a derrota de Guadalete; os PAINÉIS V e VI deixam ver as figuras de D. Rodrigo com a imagem da Senhora da Nazaré, e de D. Rodrigo peregrino; o PAINEL VII representa Frei Romano com a imagem e D. Rodrigo peregrino; o PAINEL VIII desenvolve a cena O caminho de Frei Romano e D. Rodrigo peregrinos, com a imagem da Senhora resgatada após a batalha de Guadalete a caminho de Portugal (busca da lapa onde a imagem foi resguardada numa espécie de ermidinha natural); o PAINEL IX alude ao Encontro de Frei Romano e D. Rodrigo no Sítio da Nazaré e mostra-se D. Rodrigo peregrino, enterrando Frei Romano junto à Praia da Nazaré, com a partida do rei Rodrigo para Viseu, onde preparava a resistência contra os mouros. Vê-se a lapa onde se encontrava, segundo a Lenda, a imagem da Senhora da Nazaré trazida da Palestina para a costa portuguesa; e o PAINEL X representa, enfim, O Milagre da Senhora da Nazaré a D. Fuas Roupinho. Este é um dos que está assinado pelo pintor Luís de Almeida.

A expansão do culto no império e a sua afirmação plena em terras do Pará

A devoção a Nossa Senhora da Nazaré em terras de Belém do Pará poderia ter chegado à região com a viagem do governador André Vidal de Negreiros, mas ganha maior no inicio do século XVIII, sobretudo quando, em 1700, decorre o alegado achamento, pelo caboclo Plácido, de uma imagem dessa invocação na margem do igarapé Murutucu.

As origens do culto eram já então muito remotas, e ligavam-se diretamente à metrópole Portuguesa e a antiquíssimas práticas devocionais dos mareantes, pescadores e homens do mar, em busca da proteção da Virgem, na zona piscatória da Nazaré. O culto, como se viu, atingira verdadeiro caráter nacional, no século XVII, dando corpo a larga expansão ultramarina.

No quadro dessa diáspora, o culto surge relacionado com os antecedentes da própria história de Portugal, e com o milagre de D. Fuas Roupinho, ligando-se as festividades e círios da Nazaré a uma espécie de culto nacional que irá ter ecos um pouco por todo o Império — na metrópole, e também na Madeira e nos Açores, em Angola, São Tomé e Cabo Verde, em Goa, etc. sendo fundados nesses territórios oratórios, capelas, ermidas e até igrejas dedicadas à Senhora da Nazaré, servidas por animosas irmandades que promoviam as cíclicas festividades.

Durante o século XX as peregrinações ao Santuário-mãe da Nazaré diminuíram bastante, sobretudo com o fenómeno do culto de Nossa Senhora de Fátima, não longe da Nazaré. Mesmo assim, perduraram os círios e as peregrinações anuais ao Sitio, com número avultado de peregrinos. Mas onde o fenómeno terá o máximo desenvolvimento será em torno do Santuário de Nossa Senhora da Nazaré em Belém do Pará, que realiza a mais extraordinária manifestação peregrinatória de todo o mundo católico: o Círio anual em honra da Senhora.

O Património Incorpóreo é hoje um campo de estudos da maior relevância, tal como vem consignado, desde 2003, com a Convenção para a salvaguarda do património cultural imaterial, da UNESCO, que Portugal ratificou. À luz da referida Convenção, cabe a cada pais pôr de pé «um ou vários inventários do património cultural imaterial existente no seu território», sendo estes «objecto de uma actualização regular» (Art. 012). Assim, a salvaguarda do Património Imaterial impõe prioridades de agenda: o caso do culto secular de Nossa Senhora da Nazaré será por certo um desses exemplos — acaso o melhor de todos —, a exigir que se desenvolva uma visão cultural integrada em que a Antropologia, a História da Arte, a História das Religiões e a Gestão de património se aliem no esforço de analisar um fenómeno desta latitude. Com este contributo sobre a sua iconografia, aqui ousamos contribuir para esse grande estudo sobre o culto da Senhora da Nazaré e as Suas expressões devocionais espalhadas pelo mundo da Lusofonia, e em particular em Belém do Pará.

Vitor Serrão, in Camões – Revista de Letras e Culturas Lusófonas, nº 25, pp. 79-87., 2016